Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 07 de agosto de 2019

O Mistério do Gato Chinês (2017): um mediano show de fogos de artifício

Mesmo banhado a espetaculares efeitos visuais, a produção chinesa é um filme indeciso que peca em conquistar o público.

O cinema chinês já proporcionou inúmeras obras-primas, filmes que se consagraram como clássicos da sétima arte. Como esquecer o primoroso “O Tigre e o Dragão” (2000), épico de aventura que definiu a carreira do grande Ang Lee? Como ignorar o belíssimo “Herói” (2002), verdadeira aula cinematográfica dirigida pelo talentoso Yimou Zhang? Imortais, esses e outros exemplos tornaram-se referência no mercado cinematográfico internacional, revolucionando a forma de costurar ação e narrativa nas telonas. Na década de 2010, entretanto, o país asiático tem encontrado dificuldades em lançar mundialmente seus últimos exemplares, o Brasil infelizmente não é uma exceção. Dessa forma, as raras produções chinesas que chegam às salas brasileiras são recebidas com muita curiosidade, e o mesmo não poderia ser diferente em relação a “O Mistério do Gato Chinês“.

Quando uma concubina da corte imperial provoca uma morte peculiar, cabe ao poeta amador Bai Letian (Xuan Huang, “A Grande Muralha”) e ao exorcista Kukai (Shôta Sometani, “Primeiro Amor”) unirem forças para desvendar o estranho ocorrido. À medida que os eventos sobrenaturais tornam-se mais frequentes, todavia, ambos acabam inseridos em uma investigação muito maior, perseguindo um alvo bastante fora do comum: o espírito de um antigo gato chinês. Extremamente “fora da caixa”, a premissa do longa de Kaige Chen (do aclamado “Adeus, Minha Concubina”) introduz o que aparenta ser uma jornada de fantasia um tanto alternativa, marcada por tons de suspense e terror de modo a romper com os padrões de obras do mesmo tipo. A entrega, no entanto, mostra-se diferente do que é prometido.

Ambientada no período da milenar dinastia Tang, o filme apresenta diversas conquistas estéticas. Desde a surpreendente recriação de época, com destaque para os detalhados castelos da China medieval, até os efeitos em computação gráfica, usados na construção dos convincentes animais em tela, tudo contribui para sua encantadora identidade visual (não à toa agraciada com sessões IMAX em países selecionados). Também chamam atenção os coloridos figurinos, que em muito combinam com a atmosfera fantasiosa sempre em cena, e a majestosa fotografia, responsável pela criação de verdadeiras “pinturas em movimento”. Unidos em determinado momento, por exemplo, todos esses aspectos permitem a ótima adaptação de uma grande festividade da época, sequência que felizmente (por esse lado) possui bastante tempo de duração.

A direção de Chen também não fica muito atrás, capaz de fornecer alguns momentos memoráveis (concentrados principalmente em seu início). Competente, o diretor cria de forma inteligente sequências repletas de tensão, encontrando no uso das sombras sua maior ferramenta. Bem colocadas, elas permitem ao antagonista de pelos pretos se camuflar nas cenas em que está presente, impedindo o espectador de saber quais serão suas próximas ações (ou próximas vítimas). Além de causar medo, tal recurso igualmente questiona a realidade do que é apresentado, manipulando as proporções do gato e brincando com o senso de percepção da plateia. Nesse mesmo sentido, também são marcantes os diferentes assassinatos, sempre inventivos e distintos uns dos outros.

É uma pena, por outro lado, que o roteiro assinado pelo próprio Chen não possa ser elogiado dessa mesma forma. Embora eficiente durante o primeiro ato, no qual predomina uma atmosfera assustadora e há uma boa introdução dos dois protagonistas, ele não resiste a clichês que reduzem bastante a sua originalidade e estão presentes em massa em pontos centrais da produção. Confuso, entrega os esclarecimentos da trama a narrações expositivas (e nem por isso esclarecedoras, visto que muitas vezes desviam o foco) e a um gigantesco flashback, cansativo apesar do esplendor técnico.

Sendo assim, é deixada a infeliz impressão de se estar diante de duas histórias inseridas em um único produto final, o forte início sendo atropelado pela segunda metade do longa. Mesmo munido de personagens carismáticas (ainda que a performance dos atores centrais não tenha nada de excepcional), o diretor demonstra não ter segurança nas mesmas, rendendo-se à introdução apressada de figuras cujo fraco desenvolvimento as impossibilita de cativar o público (além de interromperem o aprofundamento da dupla inicial). Chen ainda se rende a frágeis toques de romance, diminuídos por serem tardiamente acrescentados, e, finalmente, é feito de refém por uma urgente necessidade de surpreender através de inúmeras reviravoltas, responsáveis por reduzir o impacto final da obra.

Com tudo isso, “O Mistério do Gato Chinês” é um filme amaldiçoado pela indecisão e condenado por seu tom inconstante. Cheio de falsas ousadias, é justamente sua falta de coragem em ir além que decreta seu esquecimento. Uma grande pena, principalmente vinda de um filme visualmente tão deslumbrante.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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