Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 01 de agosto de 2019

Eu Não Sou Uma Bruxa (2017): um novo olhar sobre bruxaria

Drama impressiona positivamente com seu roteiro surpreendente e metáforas relevantes.

Há algumas décadas, a ideia de bruxa em grande parte se baseava numa velhinha feia, que ficava dentro de seus aposentos lançando feitiços maldosos em quem cruzasse seu caminho. Já hoje em dia, quando pensamos no mesmo conceito, normalmente temos uma figura bem desenhada na nossa mente: criaturas extremamente poderosas, que estão no controle da situação e são temidas, porém respeitadas por aqueles menos poderosos ao seu redor. Em “Eu Não Sou Uma Bruxa”, acompanhamos Shula (a estreante Maggie Mulubwa), uma garota de oito anos que aparece em uma aldeia da Zâmbia sozinha e sem dar explicações para os moradores. Sua chegada traz caos para a comunidade, que a acusa de ser uma bruxa por conta de seu comportamento considerado estranho e por nunca falar nada, mesmo quando interrogada pela polícia.

A diretora Rungano Nyoni, em seu primeiro longa-metragem, utiliza-se da subversão de vários clichês com a forma que retrata suas “bruxas”. Aqui, elas são reconhecidas pela sociedade local, porém são excluídas de seu convívio, sendo forçadas a viver separadamente ao mesmo tempo que trabalham para o governo em lavouras e servem de atração turística. Além disso, são obrigadas a usar rédeas para “não voarem”, podendo ir apenas até uma certa distância. São mulheres mais velhas que foram acusadas de bruxaria por motivos irrisórios, por não se encaixarem dentro de suas aldeias da forma considerada normal pelos outros moradores. Por ser apenas uma criança, Shula é acolhida pelas bruxas enquanto um oficial do governo local, Sr. Banda (interpretado por Henry B.J. Phiri, em seu primeiro papel), percebe que tem uma oportunidade de usá-la para seus próprios interesses políticos.

Com todo esse contexto, já seria fácil sentir empatia por Shula por ela ser apenas uma criança que é jogada como um peão em situações onde ela não deveria estar, porém a atuação poderosa da pequena Maggie solidifica ainda mais esse sentimento. A jovem atriz consegue passar tudo que sua personagem está sentindo mesmo sem ter muitas falas durante o filme, feito difícil até mesmo para atores veteranos. Conseguimos perceber o conflito interno de Shula entre querer agradar aqueles ao seu redor em prol da sua sobrevivência e suas reais vontades. Outro destaque é Henry B.J. Phiri, que interpreta o Sr. Banda como um personagem caricato, porém odioso ao mesmo tempo. A visão de Nyoni das bruxas convence e desperta o interesse do espectador para querer saber mais sobre aquela cultura.

A trama é muito bem construída pelo roteiro de Nyoni, que nos dá informações suficientes no começo para entendermos o que está acontecendo e vai expandindo durante a narrativa em detalhes que a deixam mais rica e interessante, apesar dos diálogos nem sempre convencerem. Numa tentativa deliberada de tornar a história surpreendente, a maioria dos personagens tem seus motivos ocultos até pontos chave.

A cinematografia de David Gallego (“O Abraço da Serpente”) consegue ser bonita ao mesmo tempo que fica na simplicidade. Ele retrata a paisagem árida do país com bom uso de planos abertos, mostrando o máximo possível dos ambientes onde os personagens se encontram, mesmo que esse tipo de plano se torne repetitivo ao longo do filme. Também são utilizados diversos closes no rosto de Shula, em uma tentativa bem sucedida de fazer a audiência observar a narrativa pelos seus olhos. A trilha sonora de Matthew James Kelly (“Pop Aye”) não é tão presente durante o filme, porém é pontual e bem utilizada nos momentos certos.

Um filme imprevisível e até um pouco surreal em partes, com final surpreendente e uma cena excepcionalmente tocante, “Eu Não Sou Uma Bruxa” se desenrola como uma sátira na sua primeira metade. Porém, quando o analisamos por completo, ele acaba se mostrando mais como uma grande metáfora afiada para os problemas recorrentes que enfrentamos na nossa sociedade atual. A maior de todas sendo o lugar da mulher na sociedade, mas também abordando a forma que a política funciona muitas vezes em benefício apenas dos políticos e a falta de respeito com crianças que se encontram em situações de risco. Nyoni consegue fazer a audiência refletir sobre esses temas de forma fluída e natural, talvez no maior mérito da sua narrativa.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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