Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 28 de julho de 2019

Jornada da Vida (2018): é tempo de descolonizar

Co-produção entre França e Senegal traz o debate da descolonização imposta sobre países africanos para uma Europa que hoje se sente invadida por estrangeiros.

Jornada da Vida” (ou “Yao” no título original, muito mais poético) é uma fábula bastante simples para a densidade que carrega. Dirigida por Phillippe Godeau (“O Grande Assalto 11.6“), a trama acompanha a jornada do garoto que dá nome ao filme (vivido com uma leveza encatadora pelo estreante Lionel Louis Basse) para encontrar seu escritor favorito, Seydou Tall (Omar Sy, “Os Intocáveis”). Yao mora numa comunidade simples no interior do Senegal e, ao descobrir que seu escritor favorito vem ao país participar da Bienal, desloca-se quase 400 quilômetros por um autográfo do ídolo. Comovido pelo empenho do garoto, Seydou se dispõe a levá-lo de volta à sua casa. A partir daí, vemos uma espécie de road movie que faz Seydou, um francês de família senegalesa, como muitos na França, reencontrar-se com suas origens africanas.

Ainda que a simpatia de Omar Sy não seja suficiente para carregar o filme inteiro, os melhores momentos são da interação de seu personagem com o garoto, por quem ele estabelece um laço afetivo mais forte do que com o próprio filho francês. Omar poderia ter somado ao personagem outras camadas, aprofundado o processo de autodescoberta pelo qual passa Seydou pelas estradas do Senegal. A limitação do ator para esse papel é compensada, felizmente, pelos personagens secundários, vividos com muita graça por atores locais.

A direção de Phillipe Godeau, senão inovadora, não abre mão da poesia visual para compor a ambientação senegalesa. Planos inspirados fazem dessa história profunda também um prazer visual pelo que aquele país tem de belo e também de feio. Não há uma idealização de Senegal, embora seus maiores conflitos internos não sejam de fato abordados.

A presença da religião e o tema da colonização, porém, marcam fortemente o roteiro, fazendo com que essa produção seja também uma obra decolonial, ou seja, através da qual se repensa algumas das consequências da dominação de países externos sobre outros – como se deu no Brasil por Portugal e no Senegal pela França. Ainda assim, trata-se de um filme francês, mas feito em parceria local. A aparente contradição não desfaz sua importância, tampouco diminui a qualidade da obra. Trata-se justamente do movimento que o filme propõe: nos fazer pensar, mesmo que constrangidamente, sobre os impactos das invasões e dominações geopolíticas à cultura e às formas de vida locais. Processos que se deram no mundo todo nos últimos séculos e que só agora são repensados de forma tão incisiva, no cinema, com filmes melhores ou piores.

Nesse caso, “Jornada da Vida” pega com beleza e sutileza o espectador pela mão e nos conduz a uma viagem senegalesa cheia de cor e força.  Um deleite para quem busca outras narrativas e pontos de vista na tela grande.

Vinícius Volcof
@volcof

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