Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 23 de julho de 2019

Deadwood – O Filme (HBO, 2019): ofuscado pelo formato

Dez anos após os acontecimentos finais da série "Deadwood", retornamos à pequena cidade e reencontramos velhos conhecidos. Mas até que ponto uma das melhores produções da HBO precisava de uma sequência?

Quando “Família Soprano” foi ao ar, um novo paradigma foi estabelecido, sobretudo no que diz respeito à narrativa. Não por acaso, a HBO teve um destaque no início do século XXI com produções de qualidade irretocável, mantendo o padrão apresentado pelos Sopranos. A série “Deadwood”, embora não tão conhecida, conseguiu se manter com certa tranquilidade no mesmo nível das demais durante suas curtas três temporadas. Mesmo tendo sido cancelada, o final é conclusivo e satisfatório ao encerrar os principais arcos apresentados. O que então “Deadwood – O Filme” teria para acrescentar à história?

Em 1889, os moradores de Deadwood celebram a criação do estado da Dakota do Sul. Porém, a cidade nunca foi conhecida por seguir ordens e as leis não possuem o mesmo significado por lá. Durante as festividades, o magnata, e agora senador, George Hearst (Gerald McRaney, da série “This Is Us”), retorna ao local para comprar as terras de Charlie Utter (Dayton Callie, da série “Fear the Walking Dead”), que estão no meio do caminho das instalações das linhas telefônicas que Hearst investiu. E ele não poupará esforços para conseguir o que deseja.

Uma das primeiras características sentidas ao assistir a esta versão de “Deadwood” é o formato adotado pelo diretor Daniel Minahan (da série “American Crime Story”). A impressão que se tem é que estamos diante de um episódio especial, com quase duas horas. A cinematografia possui todos os vícios de produções feitas para a TV, desde os movimentos de câmera até os enquadramentos. Nada ali foi pensado para ser exibido em uma tela grande (e é importante ressaltar que esta nunca foi a intenção da HBO com o filme). A estranheza no formato vem pela opção narrativa de se contar a história. Enquanto a imagem nos remete ao formato televisivo, o roteiro possui características clássicas adotadas pelo cinema, criando uma obra que não se beneficia visualmente do seu próprio formato.

Contudo, tal escolha não é exatamente um equívoco, embora soe confusa em determinados momentos – cenas internas e com diálogos são as principais afetadas aqui. Minahan consegue lidar bem com o material. Seu histórico como diretor – que passa por séries como “A Sete Palmos”, “Game of Thrones” e a própria “Deadwood” – pode ser sentido, e a história é narrada de maneira impecável. Resgatando personagens, respeitando suas personalidades e, ao mesmo tempo, sabendo lidar com a urgência da curva dramática exigida pelo estilo mais enxuto de um longa-metragem, o filme sabe utilizar clichês tão comuns do faroeste para criar um ambiente sempre tenso.

É desta caprichosa narrativa que surge outro grande mérito do filme. Ao reconhecer que o público aqui pode não se limitar às pessoas que acompanharam a série, cada personagem, bem como seu passado, são apresentados como se pela primeira vez. Tais apresentações não tomam tempo excessivo de tela, nem param o filme para contar uma história secundária. Desta forma, quando vemos Al Swearengen (Ian McShane, “John Wick 3: Parabellum”), sabemos o quão debilitado ele está pelo excessivo consumo de álcool, então algumas lembranças são citadas ou apresentadas em forma de flashback, e tudo o que era necessário saber sobre a personagem nos é dito (ou lembrado).

Enquanto os méritos do filme dependem muito da mão do diretor, o elenco não fica para trás. Composto essencialmente da equipe que estava presente na série, é muito agradável ver como o tempo afetou cada uma das personagens e como sua presença ali moldou a pequena cidade de Deadwood. George Hearst, por exemplo, incorpora muito bem o peso de um senador, um cargo que lhe oferece poder além do que já possuía. Trixie (Paula Malcomson, da franquia “Jogos Vorazes”) tem papel fundamental na trama e é a principal responsável por ligar a série ao filme. Ela é quem mais parece buscar ativamente por mudanças pessoais. Assim, tanto quem já assistiu à série, como quem está tendo contato com o filme apenas, entende suas motivações. Situação que se repete com as principais personagens da trama.

Embora ofuscada pela grandiosidade da série, “Deadwood – O Filme” tem diversos méritos e um cuidado técnico evidente desde a primeira cena. Há muito respeito ao material original e, não fosse sua relação direta com a série, talvez estivéssemos diante de um dos melhores westerns dos últimos tempos. É um filme que passa despercebido pelo grande público (assim como aconteceu com a série no passado), mas cuja qualidade narrativa supera qualquer limitação que possa haver aqui. Na pior das hipóteses, pode servir de motivação para que mais pessoas descubram uma das melhores séries já produzidas pela HBO, o que nunca é pouca coisa.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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