Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (2001): um épico para a todos governar [CLÁSSICO]

O longa que iniciou a trilogia fantástica de Peter Jackson é um gigantesco acerto de adaptação de obra literária, épico aventuresco, atuações precisas, visuais de tirar o fôlego, trilha sonora emocionante e avanços tecnológicos.

Em 2001, uma das trilogias mais marcantes da história da sétima arte iniciava sua jornada nas telas, resgatando o gênero épico de grandes aventuras com gigantesco escopo e trazendo uma nova percepção para o que podia ser feito com fantasia e adaptações de obras literárias. “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel” começa com a frase “o mundo mudou”, altamente propícia para o que a obra fez para o cinema.

O longa conta a história de Frodo Bolseiro (Elijah Wood, “A Sacada”), que se vê de posse de um anel forjado pela entidade maligna Sauron para dominar toda a vida da Terra-Média. Para entender melhor o cenário em que tudo se passa, o filme abre com um impressionante prólogo de sete minutos, onde uma etérea narração de Galadriel (Cate Blanchett, “Como Treinar o Seu Dragão 3”) é seguida por uma sequência de guerra com gigantesco escopo, mostrando elfos e homens lutando contra orcs e forças inimigas. O grande coro de vozes graves da trilha sonora de Howard Shore (“Spotlight: Segredos Revelados”) dá o tom épico da cena, que ao mesmo tempo choca e conquista o público com a tecnologia trazida para construir grandes batalhas campais. Méritos de um software desenvolvido para o filme, que criava exércitos cujos membros agiam de maneira independente, mesclando bem o digital com efeitos práticos e atores reais. Já nos primeiros minutos, realmente o diretor Peter Jackson deixava bem claro que o cinema não seria mais o mesmo.

Após o prólogo, o espectador recupera o fôlego quando é apresentado aos hobbits e ao Condado, onde vivem. Lá, as influências malignas ainda não chegaram e os habitantes vivem uma vida feliz e inocente, alheios aos perigos do mundo. A trilha aqui muda para suaves notas que fortalecem o espírito despreocupado do lugar, que conta com lares calorosos e convidativos, onde há sempre comida caseira e devoção a boas bebidas e fumo. O mago Gandalf (Ian McKellen, “A Grande Mentira”) chega para o aniversário de Bilbo Bolseiro (Ian Holm, “O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos”), com diálogos que fazem uma perfeita ponte entre a sequência inicial, o momento atual dos personagens e os eventos que dão início a história. Aqui já se nota o fantástico trabalho de adaptação dos livros para as telas no roteiro de Fran Walsh, Philippa Boynes e do próprio Peter Jackson (também autores de “Máquinas Mortais”) os quais, mesmo com ajustes durante as filmagens da trilogia, conseguiram traduzir o cerne da obra original com êxito.

A partir daí, começa o que é basicamente um road movie, onde se embarca numa longa jornada que transforma aqueles envolvidos para sempre. Na primeira metade do filme, o grupo de quatro hobbits composto por Frodo, Sam (Sean Astin, “Gloria Bell”), Merry (Dominic Monaghan, “Mudo”) e Pippin (Billy Boyd, “Mara e o Senhor do Fogo”) precisa levar o anel até Valfenda, o lar dos elfos. No caminho, o guardião Aragorn (Viggo Mortensen, “Capitão Fantástico”) se junta a eles, ajudando-os a escapar dos nazgûl – espectros do Anel – entidades malignas servas de Sauron, representadas visualmente por cavaleiros de mantas negras, mas vazias e sem rosto. O efeito sonoro de seus guinchos é arrepiante e ilustra como sua presença é dotada de uma influência mágica que causa pavor e desesperança.

Pode-se argumentar que a primeira hora e meia é apenas apresentação e que o filme começa de verdade a partir desse momento, pois o senso de urgência, tensão e as sequências de ação são constantes pelo resto do tempo de projeção. Tudo intercalado com bons diálogos, alguns altamente memoráveis, como a conversa entre Gandalf e Frodo nas minas de Moria, e os momentos de genuíno carinho entre o Portador e Sam, que infelizmente geram inúmeras piadas de espectadores que ainda não conseguem ver dois homens mostrando afeição um pelo outro sem que isso implique em interesse romântico.

Qualquer roteiro, por melhor que seja, não sobrevive muito sem bons atores para interpretá-lo, e aqui está outro trunfo. Os hobbits são distintos em sua maneira de ver a vida, seres ingênuos, que conhecem pouco do mundo e gostam de coisas simples, mas que possuem imensa coragem e determinação quando se deparam com situações em que algo precisa ser feito, mesmo não sendo desprovidos de medo, o que os torna mais admiráveis. Entre eles, destaque para Wood, usando muito bem seus grandes olhos para ilustrar sofrimento e firmeza; e Astin, tão carinhoso e sensível que parece ter o maior coração da Terra-Média. Sean Bean (“Perdido em Marte”) como Boromir é orgulhoso e honrado, mas seu desejo de salvar sua nação o leva a sentimentos dúbios perante seu dever e o Anel. Orlando Bloom (“Atormentado pelo Passado”) é altivo e etéreo em sua maneira de falar como Legolas; John Rhys-Davies (“Aquaman”) traz a voz grave e áspera de Gimli à vida, mas acabou sendo um personagem mais cômico do que nos livros, o que sempre gerou debates entre fãs; McKellen transmite imponência e sabedoria; Mortensen expressa bondade mesmo com dúvidas de sua própria capacidade; e Christopher Lee (“O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos”), que sempre cai bem como vilão, entrega um Saruman que exala poder, ganância e desprezo.

O massivo projeto da trilogia teve orçamento de 300 milhões de dólares, e cada centavo está na tela representando a grande qualidade técnica que, décadas depois, ainda convence. O cenário de Hobbiton, a vila dos hobbits, foi construído um ano antes das filmagens para que o local parecesse real, com sua vegetação natural sendo cuidada pela produção para que parecesse viva, ao mesmo tempo que desse a sensação de que o local possui habitantes, que criariam caminhos através do verde para pequenas ruas. Outro cuidado necessário foi construir dois cenários para Bolsão – a casa de Bilbo – um em tamanho real para os atores que interpretaram os hobbits, e outro 33% menor, para as cenas com Ian McKellen darem a noção de diferença de altura. Para que os atores pudessem contracenar e ainda assim manter a ilusão de tamanhos distintos, diferentes técnicas de perspectiva forçada foram desenvolvidas. Há cenas em que, digamos, Aragorn, é filmado mais perto da câmera do que um dos hobbits, criando a ilusão de ótica de que há uma boa diferença de altura. Quando Frodo e Gandalf estão na carroça no início do filme, Wood não estava sentado exatamente ao lado de McKellen, mas cerca de um metro atrás do mesmo. Há cenas também em que atores usam próteses extensoras nas pernas para parecerem maiores e, claro, também há o auxílio de imagens geradas por computador.

Tal minúcia nos detalhes permeia toda a obra, de pequenas decorações nos figurinos a um chão magnetizado para ilustrar o Anel caindo com peso que o coloca como algo místico e único, a experiência narrativa do filme é única. A preocupação em trazer o mundo criado por J. R. R. Tolkien à vida é tão bem executada que qualquer fã de longa data imediatamente reconhece locais e personagens apenas pelo visual. Se os roteiristas (acertadamente) optaram por retirar o grande número de poemas e canções dos livros por um lado, por outro tiveram a preocupação de trazer as línguas criadas pelo autor para o longa, o que era absolutamente essencial não só por questões de imersão, mas também porque Tolkien era apaixonado por idiomas. Usar suas criações linguísticas era o mínimo esperado para respeitar o espírito do material original.

Uma obra que marcou a história da sétima arte, “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel” realizou sonhos ao trazer uma obra literária ao audiovisual com um louvor tamanho que poucas adaptações sequer chegam aos pés. Com vívido carinho e respeito ao material original, o espectador é transportado à Terra-Média e embarca nas várias jornadas de companheirismos com afinco. Dotado de um visual fantástico, excelentes atores e uma das trilhas mais impactantes e lindas do cinema, o filme que deu início à trilogia de Frodo e companhia é uma experiência única pela qual todos merecem passar.

Bruno Passos
@passosnerds

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