Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 05 de julho de 2019

Estranha Presença (2018): estranheza que dá errado

Ao invés de conseguir retirar o melhor de cada um dos estilos utilizados, a mistura de gêneros feita por Lenny Abrahamson entrega um filme enfadonho e frio que mais afasta do que envolve o espectador.

Estranha Presença” é uma drama familiar na Inglaterra do pós-Segunda Guerra Mundial, que contém elementos de suspense sobrenatural e uma atmosfera misteriosa. É um filme que ainda reúne um bom elenco e a direção de Lenny Abrahamson, conhecido após seu trabalho em “O Quarto de Jack“. Ingredientes que somados poderiam proporcionar uma boa experiência cinematográfica, não fossem o roteiro superficial, as atuações medianas e o ritmo excessivamente moroso que não leva a nada significativo. A impressão de bom potencial logo é substituída por  uma lista grande de problemas.

A combinação entre drama e suspense é feita para contar a história do médico Faraday (Domhnall Gleeson, “Star Wars: Os Últimos Jedi”), chamado para atender a família Ayres que vive em uma região interiorana da Inglaterra. No local, ele conhece a matriarca Mrs. Ayres (Charlotte Rampling, “45 Anos“) e os filhos Roderick (Will Poulter, “Black Mirror: Bandersnatch“) e Caroline (Ruth Wilson, “Locke“), descobrindo segredos não revelados do passado da família. O desequilíbrio entre os gêneros é visto na insuficiência do seu desenvolvimento separadamente e na maior duração do drama na narrativa, enquanto o suspense é minimamente mencionado após uma hora de projeção.

O foco narrativo se inicia sobre a casa através da narração em voice over de Faraday, relatando o magnetismo e a imponência da construção que tanto o impressionavam na infância e ilustrando os flashbacks sobre o período glorioso do lugar. Contudo, com o avanço da narrativa, a atenção sobre a residência é deixada de lado em favor da condição psicológica de seus moradores. Nesse momento, Lenny Abrahamson falha em dar ritmo, criando sequências muito longas ou imprimindo uma lentidão que ofusca até as passagens emocionalmente mais impactantes. A cadência dos acontecimentos se justificaria se houvesse a sensação de que a trama está se movendo ou os personagens estão se desenvolvendo, mas o que predomina é a repetição incessante dos dramas daquelas pessoas já compreendidos há algum tempo.

Mesmo colocando os Ayres no centro da narrativa, a família é tratada irregularmente pelo roteiro, sendo os filhos enfocados repetidamente e a mãe menosprezada sem muito desenvolvimento. Roderick é apresentado como um homem atormentado por sequelas da guerra que o deixaram permanentemente com ferimentos sérios no rosto e na perna, que tem dificuldades em administrar os negócios familiares e os problemas emocionais e psicológicos; Caroline é descrita como a única pessoa consciente daquele lugar que se esforça para ajudar os parentes, mas que mereceria um lugar melhor para viver e se salvar das influências familiares negativas; e a matriarca é apenas colocada como símbolo do fim de uma era gloriosa para a família. Cada um dos personagens tem seu próprio conflito, sem que se possa, contudo, transmitir peso dramático para o público e alguma identificação – deficiências provocadas pelo ritmo lento e pela frieza dos desempenhos mornos dos três atores.

Outra razão para a ausência de envolvimento emocional é o protagonismo do doutor Faraday, um personagem extremamente racional, introspectivo, impassível e de modos muito controlados (à exceção de uma cena de descontrole emocional no terceiro ato). Domhnall Gleeson entrega uma performance compatível às indicações do roteiro e do direção, preciso na evocação do autocontrole do homem devido à postura ereta e ao semblante neutro de sentimentos acalorados. Por outro lado, a criação de um protagonista nesses moldes afeta negativamente a dimensão dramática do filme. Na composição do personagem, é possível notar sua inserção gradual na casa assumindo responsabilidades e se oferecendo para cuidar genuinamente dos Ayres em função da relação que se estabelece com Caroline, porém sempre ficam superficiais suas recordações e reflexões sobre o poder da casa sobre ele desde a infância.

O elemento que se mantém imune às falhas de roteiro e de ritmo é o estilo visual, tanto do design de produção quanto da fotografia. A casa é mostrada no presente sob algumas ruínas provocadas pela passagem do tempo, algo acentuado com o avanço do filme e com as tragédias ocorridas – exemplificadas pelas cores desgastadas nas tapeçarias e pelo caráter abandonado de aposentos empoeirados. A iluminação é outro ponto forte para a ambientação do declínio da família, já que as cenas internas são filmadas constantemente sob uma forte escuridão, enquanto as cenas externas ganham filtros de luz melancólicos.

Nos minutos finais, a abordagem do sobrenatural também revela a superficialidade, a insuficiência e o distanciamento de realizadores que pouco valorizam esse aspecto misterioso. O filme apenas insinua esteticamente a tal presença do título em breves momentos em que a câmera assume o ponto de vista de algo fora do quadro ou enquadra um espaço aparentemente vazio – nesses poucos momentos, enfim os personagens parecem sofrer a interferência de uma força desconhecida; encadeia diálogos expositivos para tentar justificar o enlouquecimento pelo qual passaram os Ayres; e carece de maiores informações para situar a existência de um espírito e o suposto conhecimento de Mrs. Ayres de quem seria essa ameaça.

Caso as qualidades estéticas do design de produção e da fotografia fossem acompanhadas por méritos narrativos de outras ordens, “Estranha Presença” poderia se tornar um drama com pitadas sobrenaturais de boa atmosfera. Por conta do frustrante trabalho executado por Lenny Abrahamson, do roteiro repleto de lacunas mal trabalhadas e de atuações decepcionantes, a única estranheza possível de ser notada é a fragilidade de uma obra com nomes importantes reunidos.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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