Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 20 de junho de 2019

Deslembro (2018): memórias e autoconhecimento

Inspirada por suas próprias experiências, a diretora Flávia Castro comanda uma sensível jornada de autognose durantes os últimos anos do regime militar no Brasil.

Deslembro incertamente/Meu passado/Não sei quem o viveu/Se eu mesmo fui/Está confusamente deslembrado/E logo em mim enclausurado flui.” Esses primeiros versos do famoso poema do escritor português Fernando Pessoa, além de servirem de inspiração para o título do filme, apontam para o mote da história que “Deslembro” conta. Sem a necessidade de colocar na tela os acontecimentos asquerosos que tomaram conta do país durante a ditadura militar, a produção de Flávia Castro (“A Aula Vazia”), influenciada por vivências da própria realizadora, vasculha as entranhas de um dos períodos mais obscuros do Brasil para traçar o caminho dos dramas de uma família que poderiam representar qualquer outra. Dotado de sensibilidade, doçura e rebeldia, surge como um filme mais do que necessário, responsável por desempenhar um papel notável na condução do espectador de volta àqueles anos.

O ano é 1979. Morando na França contra a sua vontade, Joana (a estreante Jeanne Boudier) e sua família preparam-se para retornar do exílio imposto pela ditadura militar após a promulgação da Lei da Anistia por parte do governo do presidente João Figueiredo. No Rio de Janeiro, Jojo, como é carinhosamente chamada pelos meio-irmãos pequenos, se depara com um lento processo de reconstrução do Brasil, ao passo que também deve confrontar suas lembranças reacendidas pela chegada à terra na qual passou parte de sua infância esquecida. A marcha da protagonista se mistura com a da diretora, cujos pais também foram exilados pelo regime militar. Exílios, fugas, luto e lutas aqui são ‘deslembrados’ pela cineasta, sendo apenas rememorados na inserção de ótimos flashbacks pela montagem, vistos como se estivéssemos olhando através de uma fresta diminuta, evocando com maestria a observação curiosa de uma criança com medo e sem reação ao que vê.

Mais importante do que sua temática é a forma como a narrativa se desenvolve em torno da personagem principal sem jamais esquecer a relevância dos outros personagens. Jojo está em contato constante com seus irmãos Paco e Leon (interpretados pelos também novatos Arthur Raynaud e Hugo Abranches, respectivamente), pelos quais demonstra inclusive um tipo de carinho maternal, já que a mãe passa a maior parte do dia fora à trabalho. Embora assuma o papel de matriarca em alguns momentos, encontra tempo para descobrir os prazeres da adolescência ao lado de um jovem conhecido da família. Estes são retratados pelo roteiro e pela direção de maneira invulgar, prezando pelo afeto das cenas e nenhuma exposição ofensiva. No meio de tantas relações, a criada com a avó paterna Lúcia (Eliane Giardini, “A Fera na Selva”) é um dos pontos altos do longa, pois além da química entre as duas figuras conjurar um sentimento palpável, é deste encontro que sai um inconformismo relacionado ao desaparecimento do filho e pai.

O hábil roteiro de Flávia Castro disponibiliza aos atores nuances para que possam trabalhar seus personagens, e eles os defendem com muito afinco. Jeanne Boudier confere à sua protagonista uma áurea de contestação, enfrentamento e ao mesmo tempo carinho, além do tangível incômodo com as memórias confusas que surgem ao longo da narrativa. Julián Marras (“I’m Not Lorena“), o padrasto Luís, faz as vezes de amigo e, quando é confrontado pela protagonista sobre suas prioridades, deixa claro que retornar ao Chile para lutar contra o governo Pinochet é o certo a fazer naquele momento. Ainda que vejamos o erro dele ao escolher os ideais ao invés de permanecer no lar, não se permite sentir raiva ou nutrir rejeição, pois o contexto criado é favorável e suas motivações confeccionadas minuciosamente. Eliane Giardini no papel da avó é um afago no coração que facilmente nos leva para seu colo como se fosse da nossa família.

Na direção, também coordenada por Flávia, é possível perceber a ternura que acompanha a narrativa. Regularmente posicionada na parte de baixo da tela, a câmera conduz o espectador a visualizar os planos pelos olhos dos meninos e meninas da trama. É uma decisão que foge do alcance de visões pouco treinadas, mas que no momento em que se nota provoca até um calorzinho no coração. Essa mesma câmera se demonstra quase documental quando trabalha com agitação nas cenas com atmosfera mais calorosa. Em tempos nos quais temos visto discussões sobre ditadura e a apreensão causada por um possível retorno desse regime horrível, “Deslembro” termina como um filme fundamental para que as pessoas entendam o verdadeiro impacto em núcleos pequenos e o tamanho do sofrimento que vai além daqueles que estiveram na frente de batalha. É o cinema brasileiro, tão pouco valorizado por nós, mostrando mais uma vez o seu poder.

Renato Caliman
@renato_caliman

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