Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 11 de junho de 2019

Joy (Netflix, 2018): discreto, mas impactante

Um alerta da sempre necessária denúncia da exploração sexual de mulheres ao redor do mundo, a obra sabe fazer o público se importar com a realidade de suas personagens.

Do século XX até hoje, problemas sociais e econômicos muito graves marcam as relações geopolíticas internacionais e as condições de vida de milhões de pessoas. Entre tantos, há as dificuldades, os preconceitos e a opressão sofridos pelos imigrantes ao deixar sua terra natal e tentar algo diferente em algum centro do mundo contemporâneo, especialmente a Europa. Um exemplo dessa situação está em “Joy“, uma produção da Netflix, que aborda a exploração sexual de mulheres africanas neste continente.

Com um elenco principal composto por atrizes estreantes no cinema, é a partir da jovem nigeriana Joy (Anwulika Alphonsus) que a narrativa se desenvolve e seu espinhoso tema é trabalhado. A protagonista sai de seu país de origem e do convívio familiar para conseguir o próprio sustento e de seus familiares trabalhando como prostituta na Áustria. Ao entrar no mundo do tráfico sexual, ela vive as adversidades diárias do trabalho nas ruas enquanto é instruída pela cafetina Madame (Angela Ekeleme) a tomar conta da novata Precious (Mariam Sanusi). Com mais essa responsabilidade em suas costas, Joy percebe de maneira ainda mais dolorosa como funciona aquele universo.

O encontro de Joy e Precious e suas trajetórias individuais são os elementos essenciais para caracterizar uma realidade nociva, violenta, arriscada e degradante na qual a prostituição é vista como tentativa desesperada de ajudar suas famílias na Nigéria. O retrato desse ambiente é feito com a câmera na mão por Sudabeh Mortezai (“Macondo”), que acompanha as personagens de perto e as enquadra pelas costas ou em planos aproximados de seus rostos. Desse modo, o público é colocado em um mundo onde as mulheres precisam fazer seus programas à noite expostas à violência de estupradores e à repulsa de se deitarem com vários tipos de homens (como no caso em que Precious atende um cliente que tinha um forte cheiro de alho na boca). Elas estão sujeitas à saudade de seus parentes tão distantes, tendo que se comunicar apenas por curtas ligações e enviando o pouco dinheiro que conseguem reunir, e com a preocupação de ajudar sua família e ainda pagar à Madame que administra o negócio.

Além dos riscos específicos relacionados ao programas feitos, a rede de prostituição é igualmente agressiva e maléfica. A organização envolve uma articulação tão grande que desestimula Joy a denunciar ou procurar a polícia para conseguir outro auxílio: um sacerdote africano faz um ritual para tornar as mulheres presas ao negócio e temerosas da punição que podem sofrer se fugirem ou não pagarem suas dívidas; Madame finge alguma empatia pelas prostitutas quando na verdade é uma pessoa controladora com o dinheiro e com o trabalho que não pode ser interrompido (por exemplo, ao ser intolerante com a tristeza de Precious e falsamente prestativa após a violência sofrida por Joy); e os “capangas” da cafetina que são intimidadores e violentos (como se vê em uma angustiante cena de estupro na qual se escuta os gritos da vítima e apenas se vê as reações das outras mulheres).

É bem verdade que a ida voluntária de africanas para o mundo da prostituição tem raízes históricas. A falta de perspectiva para muitos residentes tem relação com tudo aquilo vivenciado por seu continente desde a exploração econômica e políticas de países europeus do século XIX, como a fome, a miséria, a proliferação de doenças, o saque de riquezas e as guerras civis. Tais influências históricas negativas atingem as personagens, como a transformação de Madame em cafetina a despeito de conhecer aquela realidade (ela inclusive alega que as mulheres atualmente não podem reclamar do que fazem porque sabem do que se trata quando viajam, diferentemente de seu tempo quando eram enganadas) e a prisão de Joy neste mundo apesar de todos os seus esforços em função das novas dificuldades que aparecem em sua vida.

As mazelas dessa atividade e da necessidade de acumular dinheiro chegam a ameaçar as relações entre as mulheres, algo nítido na cena em que Joy confronta Precious dizendo que esta precisa se esforçar mais e não pode confiar em ninguém, nem na própria Joy, porque podem roubá-la ou prejudicá-la. Porém, é possível ver momentos em que as personagens interagem e possuem uma sociabilidade própria de amabilidade e carinho, como quando se divertem comentando o sujeito com cheiro de alho e dançando ao som de uma música na TV. Assim como em outras passagens, o filme investe em planos longos com o intuito de transportar os espectadores para perto das personagens e fazê-los observar cada mínimo gesto e expressão e utiliza o figurino chamativo de cores fortes, maquiagem pronunciada e perucas/cortes de cabelo destacados para indicar como suas aparências são decisivas no trabalho que fazem.

A maneira como “Joy” se desenvolve sem pressas, mergulhando a câmera no interior de sua narrativa para acompanhar as vivências e dores de Joy, Precious e das demais mulheres, é bastante impactante e ecoa nas sensibilidades de quem assiste à produção. A união bem fina da força com que o tema é trabalhado e a linguagem compatível com as discussões levantadas torna o filme muito bem-sucedido. Para construir o resultado final, Sudabeh Mortezai filma o cotidiano, os tempos silenciosos e as passagens aparentemente banais da vida que revelam sempre algo expressivo e desconcertante como é o caso da perturbadora cena final.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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