Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 15 de junho de 2019

Um Trapaceiro do Bem (Netflix, 2019): sofrência asiática

Mamão com açúcar indiano não oferece nada de novo e surge apenas como mais uma obra para preencher a lista de filmes da Netflix.

Querer expandir o seu catálogo é um ato louvável da Netflix. É claro que esse objetivo não é fruto de uma natureza bondosa do serviço de streaming, tendo em vista de que acabou por tornar-se necessária essa expansão em virtude do surgimento de novas competitivas plataformas no mercado. No entanto, aproveitando seus bons índices e desejando mantê-los crescente sem prazo de validade, essa iniciativa, por outro lado, serve de oportunidade para talentos que por algum acaso estão à espera da primeira chance para provar o seu valor. Ocorre que existem ainda casos de filmes que são encomendados apenas para preencher o catálogo, como é o caso de “Um Trapaceiro do Bem”, produção asiática que se desenha como comédia, mas que nem mesmo no meio de sua bagunça narrativa é possível achar algo útil capaz de arrancar um simples sorriso.

A história nos apresenta a Nirma (Mithila Palkar, “Little Things”), uma mulher talentosa porém insegura demais, que após muito esforço acaba de comprar seu primeiro carro. O veículo é roubado justamente quando para num templo indiano, onde vai agradecer aos deuses pela conquista. Nirma então recorre a um vigarista boa praça conhecido como Artista (Abhay Deol, “The Lovers”) para ajudar a recuperar o precioso carro que agora está em posse de uma perigosa gangue de Mumbai. Todo o filme encara a tarefa árdua de chamar a atenção do espectador ou com sua premissa ou com poucos minutos de sessão, e nesses dois quesitos o roteiro escrito por Rahul Awate e Sachin Yardi falha miseravelmente. Um carro roubado, mafiosos, um bode celebridade e uma dupla composta por figuras extremamente distintas poderiam soar, no mínimo, interessantes a ponto de divertir, entretanto, o argumento simplório de resoluções fáceis não colabora.

A ação-recompensa que a narrativa entrega durante seu desenvolvimento expõe a falta de criatividade de um texto desarticulado, cuja estrutura narrativa baseia-se em obstáculos, frustrações, perdas e ganhos. São incontáveis as vezes em que a protagonista é colocada sob uma situação de pressão, quando ora encontra um meio tranquilo de libertar-se ou o próprio empecilho não é difícil o bastante que uma criança não possa resolver. Além disso, passagens sem noção alguma dão as caras para irritar ainda mais quem assiste (vide a cena em que Nirma tem uma conversa afável com o homem que roubou seu carro – qualquer ser humano no lugar dela demonstraria um pouco de indignação). Esse caso leva à outra constatação sobre o longa da Netflix que, juntamente com o roteiro atrapalhado e expositivo e a direção inábil, consegue atirá-lo no fundo do poço da comédia de onde não tem forças para sair.

“Um Trapaceiro do Bem” coleciona atuações fracas e bobas. Vivendo a personagem principal, a atriz Mithila Palkar surge incapaz de extrair outro sentimento que não seja o de pena. Revela sua insegurança por meio de uma fala tímida, olhar sempre baixo e trejeitos semelhantes aos de uma garotinha assustada. O fato de logo no início pedir que a placa do seu carro seja trocada por uma na qual a soma dos números não seja 11 (motivo? o dia do ataque às Torres Gêmeas em Nova York) é um artifício desnecessário do argumento que, ilustrado por ela para indicar seu temperamento receoso, demonstra ser uma decisão ainda mais constrangedora. Enquanto Mithila sofre para cativar, seu parceiro de cena, o ator Abhay Deol, também luta para evocar carisma com seu vigarista atencioso, apresentado como alguém letrado, mas que não sabe nem o que é mandarim. Ademais, o núcleo dos mafiosos atesta a tolice do roteiro com papéis absurdos.

Além de demonstrar falta de cuidado para nortear um elenco perdido em cena, a direção de Sachin Yardi tampouco acrescenta à linguagem narrativa. Vulnerável e rotineira, faz um trabalho precário incapaz de oferecer quadros ou sequências inteligentes e cativantes, seja em momentos de emoção ou de tensão. Outra escolha equivocada fica por conta da sonoridade, repleta de sons não-diegéticos bregas e de formato infantil, que manifestam-se regularmente após algum tipo de piada sem graça para ilustrar o pensamento dos personagens e induzir o espectador a rir. Existem filmes que mesmo ruins podem ensinar o que não devemos fazer, pois “Um Trapaceiro do Bem” é um caso deprimente de comédia, que vem com a premissa de fazer alegrar, mas ao final nos deixa triste. Entendo a obrigação da Netflix em ampliar seu repertório, visando permanecer competitiva entre os serviços, portanto, é bom começar a peneirar a fim de evitar constrangimentos como esse.

Renato Caliman
@renato_caliman

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