Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 27 de maio de 2019

Quem Você Levaria para uma Ilha Deserta? (Netflix, 2019): jogo destrutivo

Uma brincadeira inocente leva a atritos complexos nessa obra da Netflix, cuja força está no carisma de seus personagens e a fraqueza na simplicidade de sua narrativa.

A Netflix tem ampliado seu catálogo gradativamente e com isso oferecido uma gama de produções que contemplam diversos gêneros em diversas línguas. No meio de tantos títulos, as produções espanholas têm ganhado muita atenção, impulsionadas pelo grande sucesso de “La Casa de Papel”. “Quem Você Levaria para uma Ilha Deserta?” é mais um filme latino, de altos e baixos, que ganha vez no extenso catálogo do serviço de streaming. Simples, ágil, apostando em caras conhecidas e com aproximadamente 1h30min, ele se apoia em uma premissa batida e sua falta de originalidade impede que a temática de sua narrativa seja maior do que ela pode ser. Ao mesmo tempo, com o seu atraente formato de baixo orçamento, a obra ‘força’ os realizadores a tomarem decisões técnicas criativas e coerentes, as quais alinhadas ao carisma dos atores revelam a capacidade do argumento de entregar alguns momentos, senão emocionantes, ao menos próximos do interessante e simpáticos.

Em Madrid, quatro amigos dividiram por oito anos o mesmo teto e agora estão prontos para seguir novos rumos ao fim do verão. Na última noite juntos resolvem sair para celebrar as mudanças, beber e se divertirem. Porém, na volta para o flat onde moram, um joguinho inocente desencadeia conflitos ardentes e destrutivos que podem definir para sempre o destino daquela forte amizade.

A narrativa exibe como pano de fundo a cidade num dia de sol escaldante que vai muito além de escolhas objetivas. A alta temperatura também pode ser interpretada como uma alegoria do clima abafado e pesado que permeia o relacionamento dos jovens Eze (Pol Monen, “Seu Filho”), Celeste (Andrea Ros, “Fuga Implacável”), Marta (María Pedraza, da série “Elite”) e Marcos (Jaime Lorente, da série “La Casa de Papel”) e mostra-se crescente à medida que a trama se desenrola. Para complementar, o excelente design de produção expõe ambientes sufocantes, tomados por cores quentes e iluminação ardente.

O apartamento abarrotado de caixas de mudança, o quarto de Marcos e Marta iluminado por um amarelo pastel de causar suor, assim como o dormitório de Celeste que tem o rosa predominando, mas a cor surge pálida, cada canto daquele apartamento traz seu estado de asfixia e é claro um pouco da personalidade daqueles que ali habitam. O cômodo de Eze, por exemplo, é invadido por um tom azul, uma cor fria que remete ao estado de espírito solitário do jovem. Decisões como essa, quando notadas enchem os olhos do espectador e revelam a habilidade do argumento em substituir diálogos expositivos por imagens. Só que as características de folhetim vespertino acompanhadas de seus clichês (grupo de jovens amigos, personalidades diferentes, dramas, sonhos e conflitos que colocam a amizade em cheque) revelam uma estrutura simplória, já conhecida, e consequentemente gera uma irregularidade na construção do roteiro, adaptado da peça homônima de Paco Anaya e do diretor Jota Linares.

A trama demora a engrenar. Começa doce demais, com diálogos rasos, desentendimentos mesquinhos aqui e ali, atuações infantis e sequências que servem somente para empacar a narrativa, vide a cena em que Marcos e sua vizinha se encontram pela primeira vez (oito anos morando no mesmo lugar e nunca se viram antes?). Pois bem, quase 40 minutos de sessão e o enredo, enfim, ganha fôlego a partir da cena em que os quatro amigos são vistos juntos num mesmo plano. A tensão dá as caras com diálogos mais maduros e a desarmonia atinge o ápice assim que a brincadeira que dá nome ao filme tem início. É durante esse período, no qual o afeto dos personagens é colocado em risco, que o público desperta do coma induzido e se depara com questões expressivas, confissões corrosivas e uma direção visivelmente mais enérgica. A dinâmica entre os atores funciona, suas interpretações crescem com essa sinergia e o joguinho pelo qual estávamos esperando demonstra valer a pena.

Vale notar que após tudo ser passado a limpo nas acomodações estreitas do apartamento, o calor atípico do dia de Madrid dá lugar a um frescor noturno e a um momento de calmaria para colocar os pingos nos Is e partir para o encerramento. Dessa maneira, “Quem Você Levaria para uma Ilha Deserta?” deixa o raso e caminha para um terceiro ato profundo e, ainda que bastante eloquente, mostra-se capaz de manter a doçura através das atuações competentes dos envolvidos. O pouco tempo de filme, mal aproveitado no começo pelo roteiro, tenta compensar com um grande desfecho, mas infelizmente não consegue o impacto desejado quando entrega o que prometera na premissa. Uma análise mais detalhada dos personagens poderia gerar um efeito mais marcante e provocar uma mistura de sentimentos ao final, que termina afinado, porém previsível. Sobre ciúmes, egoísmo, descobrimento, brigas e reconciliações – uma montanha russa de emoções feita para adolescente ver.

Renato Caliman
@renato_caliman

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