Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 06 de maio de 2019

O Mundo Sombrio de Sabrina (Netflix, 1ª Temporada): livre-arbítrio é vital

Boas atuações carregam um roteiro que falha no equilíbrio entre momentos leves e sérios, mas acerta em cheio na criação de mundo e nas relevantes discussões que oferece com ricas metáforas.

Baseada em quadrinhos da Archie Comics, uma leve série de comédia foi produzida entre as décadas de 90 e 2000 sobre uma jovem bruxa chamada “Sabrina, Aprendiz de Feiticeira”. Em 2018 , Roberto Aguirre-Sacasa (criador da série “Riverdale“, também do universo da editora) desenvolveu uma nova adaptação sobre a mesma personagem para a Netflix, mas desta vez com uma pegada de horror sobrenatural com pitadas de romance adolescente e suaves tons cômicos. Nascia “O Mundo Sombrio de Sabrina.

Apesar de sombria, a série tem um tom jocoso quanto a sua abordagem à sociedade bruxa, utilizando-a como metáfora para dar suas cutucadas na ancorada ao mundo real e, assim, conectar-se com o público. Ser produzida diretamente para um serviço de streaming trouxe uma de suas grandes vantagens, a de poder gozar de uma classificação indicativa maior do que a sua contraparte anterior e retratar sem receios o uso de sangue, violência e louvor a Satã, o que acaba resultando numa ótima sátira a qualquer tipo de controle religioso. A protagonista ousa questionar os ensinamentos antiquados da Igreja da Noite (nome de seu clã de bruxas) ao deixar transparecer seu ideal de respeito e igualdade entre humanos e feiticeiros. Os discursos levantados pela série são ótimos espelhos para a realidade e busca indicar o melhoramento das relações interpessoais e intrapessoais.

Há poucas similaridades com a série original. A protagonista, seu interesse amoroso e suas tias estão lá, mas é basicamente isso. Sabrina, interpretada muito bem por Kiernan Shipka (“O Silêncio”), transita entre sentimentos ambíguos sobre suas vidas nas sociedades bruxa e humana, já que ela é filha de um poderoso feiticeiro com uma mulher sem poderes. Esse conflito nasce do fato de não querer renegar nenhuma de suas origens, mas sim abraçá-las, algo que não é claro nem mesmo para ela no início. Desse (e de outros) nascem ótimos diálogos com sua altiva e defensora das tradições bruxas tia Zelda (Miranda Otto, “Annabelle 2: A Criação do Mal”), sua adorável e aparentemente inocente tia Hilda (Lucy Davis, “Mulher-Maravilha”), seu charmoso e misterioso primo Ambrose (Chance Perdomo) e seu amável namorado Harvey (Ross Lynch, “O Despertar de um Assassino”).

A obra amadurece ao fugir do maniqueísmo conforme a protagonista se vê em situações que a forçam a questioná-las, ao mesmo tempo que é confiante de suas posições. Junte a esse caldeirão ingredientes como a “diretora” Wardwell (Michelle Gomez, da série “Doctor Who”), o alto sacerdote Blackwood (Richard Coyle, “Contra o Tempo”) e as amizades com Roz (Jaz Sinclair, “Slender Man: Pesadelo sem Rosto”) e Susie (Lachlan Watson) e a série se enriquece com uma narrativa suculenta que permeia inúmeras questões sociais relevantes. Gomez, aliás, dribla o fato de sua personagem ser usada várias vezes como ferramenta expositiva para forçar a história a andar a partir de uma atuação imponente, sexy e transbordando carisma. A atriz mostra camadas ali que podem trazer resultados intrigantes para a próxima temporada.

O roteiro tem seus altos e baixos, escorregando com momentos excessivamente piegas que destoam das discussões mais sóbrias trazidas pelo mesmo. O equilíbrio humorístico também não é perfeito e a própria Shipka não encaixa bem nessas cenas. Entretanto, a criação de mundo é certeira e os arcos de seus personagens se desenvolvem de maneira fluída e cativante. Com boas metáforas que levam a discussões importantes, “O Mundo Sombrio de Sabrina” tem uma ótima primeira temporada, trazendo uma abordagem bem mais madura e soturna do que sua predecessora comédia adolescente.

Bruno Passos
@passosnerds

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