Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 23 de março de 2019

3% (Netflix, 1ª Temporada): distopia à brasileira [SÉRIE]

Primeira série brasileira produzida pela Netflix, esta distopia traz uma ótima crítica social que, mesmo com um roteiro que não acerte em alguns importantes aspectos, cria personagens complexos interpretados por um ótimo elenco.

3%” é sobre uma sociedade distópica, onde as pessoas vivem em um de dois lugares. O Continente, escasso de água, comida e energia, e onde a vida é difícil e a miséria reina. E o Maralto, tido pelos habitantes do Continente como o paraíso, o lugar onde prospera a felicidade e ninguém necessita de nada. A crítica social pode até ser leve, mas não deixa de ser eficiente. Todos os anos, os habitantes do Continente que completam 20 anos de idade podem participar do Processo, ao final do qual, 3% deles serão escolhidos para viver em Maralto. Logo vemos também que há uma organização guerrilheira, a Causa, que luta para acabar com tudo isso.

A série peca em definir melhor a diferença entre as vidas nos dois lugares. Tudo o que sabemos é apenas dito, e não mostrado. Mais exemplos da disparidade entre as duas regiões poderiam ter sido oferecidos, além de mais dos sofrimentos e dificuldades da vida no Continente. Como está, não há uma criação de problemas clara que leve à grande indignação que gerou a Causa. Os momentos de abuso de poder por parte de algum personagem, por exemplo, são rasos e carecem de peso. Embora os figurinos e cenários deem conta do recado ao fornecer uma boa metáfora visual para a injustiça social deste universo, um maior investimento no roteiro teria ajudado bastante a série.

Onde o roteiro acerta, e muito, é nos personagens. Eles são bem distintos entre si, com motivações variadas e bem definidas. Quando a série dá a impressão de que o antagonista (João Miguel, de “Canção da Volta”, excelente como o aparentemente frio Ezequiel) está lá só para “ser mau”, ela fornece um episódio que aprofunda a história dele e o humaniza, tornando-o uma pessoa complexa e com traumas. Os atores estão muito bem nos papéis. O que pode causar estranhamento é o fato de não estarmos acostumados a esse tipo de produção falada em português. É de se notar também que os atores foram direcionados a terem uma atenção especial com a dicção, tudo muito bem enunciado para que se façam entender. Apesar do elenco fazer isso com louvor, esse tipo de fala não soa tão natural para falantes nativos da língua portuguesa. Talvez isso seja notável também em séries produzidas, digamos, nos Estados Unidos, e que a audiência americana também se pegue compartilhando dessa mesma estranheza.

De qualquer modo, todo o elenco merece elogios. Bianca Comparato (“Minha Fama de Mau”) entrega muito bem uma pessoa que esconde algo que parece bem mais complexo do que inicialmente somos levados a pensar; Michel Gomes (”Através da Sombra”) está vulnerável, mas determinado; a estreante Vaneza Oliveira é um poço de energia e intensidade; Rafael Lozano (“O Grande Circo Místico“) está inseguro por trás de sua fachada imponente e confiante; e Rodolfo Valente (“Amparo”) traz um personagem aparentemente instável, mas que é cheio de sentimentos com os quais ainda não lidou. O que teria melhorado ainda mais os personagens seria ter mostrado mais do passado de cada um. Conhecemos apenas pontos importantes e fixos na história de cada um, mas não foram construídos de forma efetiva para que se aprenda bem sobre esses indivíduos. Seu desenvolvimento teria se encorpado se suas rotinas, suas vidas no dia-a-dia, tivessem sido melhor exploradas.

Apesar das falhas, “3%” é uma série de qualidade que mais acerta do que erra, sendo a primeira série totalmente produzida no Brasil pela Netflix. Com sua qualidade acima da média, já se torna um importante passo para o cenário audiovisual brasileiro.

Bruno Passos
@passosnerds

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