Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 12 de março de 2019

Firebrand (Netflix, 2019): uma voz contra o assédio sexual

O desafio de falar abertamente sobre o estupro tem resultados ambíguos em "Firebrand". Por um lado, é sempre importante que o tema seja abordado com um olhar crítico e sem querer culpar a vítima. Por outro, a tentativa de não transformar o filme num drama muito pesado prejudica a narrativa. O resultado é um meio termo que oscila entre ótimos momentos com a protagonistas e cenas que beiram um besteirol mal-intencionado.

A diretora indiana Aruna Raje (“Rihaee”) tem uma carreira construída com filmes que abordam as diferentes visões sobre a vida da mulher em seu país. São personagens do cotidianos, que normalmente foram vítimas de alguma violência, e respondem a isso como lhes é possível. Não há uma tentativa de colocá-las em situações improváveis, o que deixa suas obras mais próximas do real. “Firebrand” segue esse mesmo estilo, porém agora com distribuição da Netflix, o que permite que um maior número de pessoas tenha acesso à sua obra.

A trama segue Sunanda Raut (Usha Jadhav), uma advogada vítima de estupro no passado e que precisa lidar com problemas no casamento enquanto trabalha num caso envolvendo divórcio e agressão em casa. Porém, conforme vai acompanhando a situação mais de perto, percebe que as coisas não são exatamente como sua cliente lhe conta.

Aruna Raje parte logo no começo do filme para uma apresentação consistente da protagonista, mostrando que ela trabalha como advogada e que suas clientes são mulheres que querem conseguir na justiça o direito de se divorciar, sem sofrerem consequências por isso. Essa definição ajuda a moldar o caráter da personagem, principalmente quando é revelado que ela mesma fora vítima de um estupro. Porém, não há uma tentativa de transformar suas próprias clientes em parte de uma vingança pessoal. Ela apenas tenta garantir que para essas mulheres não falta a justiça que ela nunca teve.

Para fugir de um drama denso e pesado, o roteiro não chega a abraçar a comédia, mas trata toda a situação com uma leveza simples. E para não parecer que a diretora não está tratando o tema com o devido respeito, ela suaviza o peso do estupro com o seu marido, Madhav (Girish Kulkarni), que busca lidar com os traumas dela da forma mais reconfortante possível. Assim, enquanto podemos observar nela as marcas deixadas pela violência e como isso afeta diretamente o seu trabalho, Madhav surge como o ombro amigo que não irá exigir que suas vontades sejam feitas. Esse conceito torna-se mais forte quando se percebe que todos os casos que Sunanda defende nos tribunais são motivados por homens que são o oposto do seu marido.

Contudo, por mais que seja interessante a tentativa da diretora de tratar de um tema delicado, o roteiro não possui força o suficiente para sustentar a história apresentada. Isso força a construção de uma subtrama que por diversas vezes assume um protagonismo cansativo, deixando a libertação de Sunanda do seu trauma em segundo plano. Pior que isso é quando essa subtrama surge como resolução para os problemas da protagonista com seu passado. A inconsistência na forma como a personagem é tratada deixa tudo menos impactante, não conseguindo criar um vínculo com quem assiste – as tentativas médicas para lidar com a situação são tão fracas que o roteiro ignora essa ideia em determinado ponto.

Mesmo contando com um elenco de peso do cinema indiano (Usha Jadhav ganhou um National Film Awards, uma espécie de “Oscar indiano” como melhor atriz) e uma diretora com bons trabalhos no currículo, “Firebrand” soa como um filme opaco. Embora se trate de um tema que precisa ser debatido amplamente, a forma como o roteiro olha para a situação no geral é fraca, e a necessidade de subplots que não tem um desfecho além de um que assume mais importância do que a trama principal, tiram o foco do problema sofrido pela protagonista. Ser distribuído pela Netflix pode ser uma decisão inteligente para levar o filme para outros locais onde dificilmente chegaria de outra forma. Infelizmente, o resultado é aquém do potencial.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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