Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de março de 2019

Crimes Obscuros (2019): densidade para quem não merece

A mais nova incursão de Jim Carrey pelas histórias dramáticas é uma infeliz combinação entre suspense frágil, estilo carregado demais e apelação barata.

O esforço de Jim Carrey para mostrar sua versatilidade dramática o fez escolher projetos interessantes para a carreira, como “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e “O Mundo de Andy“, mas também se envolver em trabalhos de qualidade muito inferior, como “Número 23“.  Esse segundo caso se repete em “Crimes Obscuros“, filme dirigido por Alexandros Avranas (“Miss Violence“), devido ao acúmulo de problemas de estilo e de construção da narrativa para um suspense que se dá uma profundidade incompatível com sua trama simplificada.

A produção se inspira no artigo “True crime: a postmodern murder mystery” publicado pela revista The New Yorker em 2008 para contar a investigação policial conduzida por Tadek (Carrey). Ele reabre um caso de assassinato quando vê semelhanças entre ele e o livro do escritor Krystov Kozlow (Marton Csokas, de “Mark Felt: O Homem que Derrubou a Casa Branca“). Sua averiguação o leva a um submundo de sexo, mentiras e corrupção vivido pelo escritor e por sua namorada Kasia (Charlotte Gainsbourg, de “Boneco de Neve“). Apenas como thriller,  o filme não cumpre seu objetivo principal porque não consegue organizar uma trama sólida em meio a tantos furos e previsibilidades: as divergências entre Tadek e o corpo policial são atiradas sem qualquer explicação; a condução da investigação paralela feita pelo protagonista não é clandestina como faz parecer; o mistério acerca do crime nunca é explorado para deixar curiosidade ou expectativa para solução; e os rumos do enigma são facilmente antecipáveis com suspeitos evidentes e reviravoltas.

Como exercício de estilo do cineasta, há uma sobrecarga de solenidade e profundidade para um enredo tão comum e já visto anteriormente nos cinemas. As sequências filmadas centralizando os personagens no plano e construindo uma áurea de dramaticidade pelos silêncios ou breve diálogos não atendem ao seu propósito, pois não tem muito a dizer ou prolongam cenas banais sem grandes simbolismos pretendidos – esse recurso somente funciona em alguns momentos em que Tadek confronta Krystov e Kasia e quando, no terceiro ato, demonstra exaustão pelo desenrolar das investigações. A impressão de pompa afetada também aparece nas escolhas visuais da fotografia e do figurino, elementos que sufocam exacerbadamente a estética do filme e não permitem ao público ter um alívio sequer: toda a iluminação é soturna e com uma paleta de cores escurecida para encobrir os indivíduos e repetir excessivamente o lado sombrio daquele mundo; e o vestuário de todos os personagens tem cores foscas ou, principalmente, escuras.

Além dos equívocos visuais, o tratamento de seu universo é problemático em função da abordagem da obra literária de Krystov e das personagens femininas. Vários trechos cruéis escritos pelo artista são citados em uma narração em off , ultrapassando os objetivos narrativos de caracterização do homem para chegar a um nível de perturbação desnecessária – a sensação deixada é causar o choque pelo choque, sem função dramática. Já todas as mulheres apresentadas são vítimas de violência e tem seu corpo exibido com uma objetificação digna de um fetichismo nocivo, também injustificável para a narrativa – aqui também existe a produção de imagens apelativas ou de choque gratuito. Abordar a corrupção moral e a violência física e psicológica do submundo não são se configuram como justificativas dramáticas para apelar em planos, enquadramentos ou diálogos que pouco acrescentam para além do que a trama já apresenta.

A própria composição de Jim Carrey também destaca a pobreza narrativa do suspense. Dá-se importância significativa para o passado do protagonista, mas seu background nunca é explorado a contento, já que as dinâmicas entre ele e sua família não são desenvolvidas, e os diálogos expositivos sugerem a existência de um lado sombrio que nem sequer é trabalhado. Assim como o roteiro enfraquece o personagem, o ator também não contribui para uma boa caracterização ao adotar postura extremamente rígida, a voz grave e o olhar sisudo, que apenas acentuam a incompatibilidade entre o que é mostrado em tela e as pretensões sentidas para enriquecê-lo.

Problemas semelhantes são igualmente encontrados na criação de Krystov e de sua namorada. Marton Csokas constrói o arquétipo do vilão caricatural com ar enigmático e desprezível transmitido por expressões faciais forçadas, além de constantemente tomar atitudes para reafirmar, a todo instante, sua brutalidade e personalidade odiosa – a própria seriedade com que o livro e as declarações à imprensa são tratados demonstra a incapacidade da produção em entender o personagem. Charlotte Gainsbourg não tem a oportunidade de compor uma personagem complexa porque Kasia é retratada de maneira incoerente, aparentando ser uma mulher passiva, porém ocultando mais camadas em seu interior.

“Crimes Obscuros” pretende ser um suspense solene que se leva muito a sério, inclusive suas características pensadas como estilo, mas que acabam se tornando numerosas falhas. As tentativas atuais de Jim Carrey de se reinserir no mercado cinematográfico com alguns trabalhos consistentes não podem considerar esse filme como uma contribuição. Falhar na criação do mistério, na construção dos personagens, nas escolhas técnicas e no tratamento do tema certamente são razões suficientes para comprovar sua ineficiência em qualquer projeto positivo.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe