Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de março de 2019

Twin Peaks: O Retorno (Showtime, 3ª temporada): o charme do incompreensível [SÉRIE]

De volta à pacata Twin Peaks após 25 anos, David Lynch redefine a experiência televisiva em uma obra que não se encaixa em nenhuma definição tradicional.

Há entre os rapadurianos uma máxima: “Se faz sentir, faz sentido“. David Lynch é o cineasta que leva ao extremo os limites desta afirmação, com suas obras despertando diversos sentimentos nos espectadores, mas raramente sendo algo inteiramente compreensível. Com isso em mente, assistir “Twin Peaks: O Retorno” é quase como apreciar uma música psicodélica: podemos cantar sem entender a letra e seu conteúdo, mas compreendemos a beleza na melodia e nos contagiamos pelo ritmo.

Vinte e cinco anos depois dos acontecimentos das duas primeiras temporadas – que foram ao ar nos início dos anos 1990 -, David Lynch e Mark Frost nos levam de volta à pequena cidade de Twin Peaks, no norte do estado americano de Washington e próxima à fronteira com o Canadá, onde todos se conhecem e nada é o que parece. E mesmo após décadas, a dupla não decepcionou e entregou uma obra de arte como poucas na televisão atual.

A letra

O agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) continua preso em uma dimensão alternativa conhecida como Black Lodge (a icônica Sala Vermelha), habitada por diversos espíritos, demônios e entidades sobrenaturais. Em sua busca por solucionar o assassinato da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee), ele acabou preso neste limbo interdimensional, substituído no mundo real por um doppelgänger maligno possuído pelo demônio BOB (Frank Silva), grande vilão e arquiteto dos desastres da série.

Mr. C., como é conhecida essa duplicata, viaja pelos Estados Unidos tentando se livrar da equipe do FBI que está em seu encalço, liderada pelo antigo chefe de Cooper, Gordon Cole (o próprio Lynch). Durante o trajeto, ele tenta criar uma forma de se libertar das últimas amarras que o prendem à Sala Vermelha e ficar livre do vácuo ao qual estará condenado quando retornar. Para tanto, ele cria um novo doppelgänger para ser enviado ao Black Lodge em seu lugar, o simpático corretor de seguros e apostador fracassado Dougie Jones.

Enquanto isso, em Twin Peaks, novas forças sobrenaturais começam a se manifestar e exercer influência sobre os habitantes. Velhos dramas ressurgem, e o caso de Laura Palmer é reaberto pelo xerife Frank Truman (Robert Forster). Com a ajuda de velhos conhecidos da mitologia local, como o oficial Hawk (Michael Horse) e Margaret Lanterman (Catherine E. Coulson), além de novos personagens, cabe a ele tentar fazer sentido do incompreensível e solucionar uma ferida ainda aberta na história da cidade.

A melodia

Quando saiu do ar na televisão americana em 1992, a “Twin Peaks” original vinha angariando diversas críticas tanto na mídia, quanto em meio aos fãs. Tendo apresentado diversos novos núcleos e inserido os mais variados mistérios, a série havia se perdido em si mesma, incapaz de oferecer respostas a um público que já ficava impaciente. Àquela época, a produção se aproximava mais a um formato de novela, fruto da escalação de diferentes diretores e roteiristas, o que acabou afetando a estrutura coesa idealizada por Lynch e Frost.

Em 2017, no entanto, “O Retorno” sabe muito bem o que quer: fazer com que os fãs não o saibam. Totalmente escrita e dirigida pelo próprio Lynch, a obra tem a sua cara: divertida, dramática e até com momentos de chatice que parecem intencionais. Ainda assim, cada olhar prolongado entre personagens, cada corredor na Sala Vermelha e cada cenário fantasioso criado por ele atribuem à série o ingrediente principal e sua maior característica: a atmosfera estranha que permeia todos os acontecimentos.

Sabemos que o universo do cineasta é excêntrico por si só, mas não há como não se admirar a cada nova anomalia e paisagem fantasiosa que ele concebe. Tudo que remete a isso foi maximizado, com tomadas aéreas maravilhosas e inquietantes e personagens queridos presos em situações que contrariam qualquer lógica ou sentido. Ainda assim, a narrativa toda é desenvolvida com toques de brilhantismo apesar da estranheza dos acontecimentos, sendo praticamente impossível prever o que vai acontecer ou mesmo entender o que ocorre no exato momento em que se está assistindo.

Nesse sentido, a série atinge seu ápice não ao final da temporada, mas em sua metade, em um mesmo episódio que transporta o espectador, ao longo de cerca de uma hora, a uma performance da banda Nine Inch Nails no bar Roadhouse em Twin Peaks, ao primeiro teste nuclear da história, em 16 de junho de 1945, e a um teatro fantasmagórico, cuja localização dimensional nem sequer é revelada. Mas tudo executado de forma mesmerizante e em perfeito andamento com o restante dos eventos da narrativa.

A música

Como qualquer música que gostamos, mas não entendemos (como as mais lisérgicas viagens de Pink Floyd, por exemplo), o mais natural primeiro passo é tentar buscar traduções e explicações para aquilo que estamos ouvindo. Afinal, saber o que estamos cantando sempre parece algo fundamental. Mas se há uma constante na carreira de David Lynch é que suas obras não são feitas para serem compreendidas.

“O Retorno”, no caso, dificilmente se enquadra em qualquer definição tradicional – seria um revival, reboot ou apenas, bem, um “retorno” em uma terceira temporada? O que Lynch nos entrega é uma obra que desafia nossa compreensão habitual do meio televisivo. Em vez de uma temporada com início, desenvolvimento e conclusão, como estamos acostumados, o que temos é um grande longa-metragem dividido em 18 partes. Mas, infelizmente, a grade horária da televisão e mesmo a disposição dos mais fervorosos fãs não permitem que um filme de 18 horas de duração seja consumido dessa forma.

Em uma era na qual o público anseia por explicações e narrativas lineares, o charme da conclusão desta saga reside justamente em evitar o caminho fácil rumo ao desfecho de um mistério tão célebre quanto o assassinato de Laura Palmer. Nesse sentido, “O Retorno” parece não ter sido feita para ser entendida, explicada ou sequer interpretada, mas sim admirada. A nós, o público, resta apenas apreciar essa canção, por mais que não saibamos o que estamos ouvindo.

Julio Bardini
@juliob09

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