Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Não Olhe (2018): espelhos, gêmeos e transtornos

Um filme com qualidade técnica, uma premissa interessante e alguns bons momentos que se perde em um roteiro fraco.

Problemas psicológicos estão presentes no gênero de terror há muito tempo. Pode-se dizer que são, inclusive, anteriores à criação da sétima arte. Clássicos da literatura como “O Médico e o Monstro”, escrito por Robert Louis Stevenson, levaram dezenas de adaptações diretas e indiretas aos cinemas e exploram, entre outros, o aspecto das doenças mentais. “Não Olhe”, escrito e dirigido por Assaf Bernstein, vai nessa mesma linha ao contar a história de uma adolescente atormentada pelo seu próprio reflexo.

No longa, Maria (India Eisley, de “Clinical”) é uma jovem no terceiro ano do ensino médio com o sentimento constante de não pertencimento. Ela é rica e tem uma casa exuberante, mas fria. As cores das paredes, os móveis, tudo passa mais uma sensação de ser uma recepção de hotel do que um lar, e isso se reflete no tratamento pouco caloroso que Maria recebe de seus pais. India Eisley tem pontos altos de atuação nas cenas em que ela é mais exigida, e baixos naquelas mais simples, mas com um resultado satisfatório.

Enquanto o pai, Dan (Jason Isaacs, de “A Morte de Stalin”) – a melhor atuação no filme -, é controlador, distante e deseja que a filha desenvolva sua autoconfiança, sem fornecer os ensinamentos necessários para que isso seja possível, a mãe, Amy (Mira Sorvino, de “Guerreiros no Espaço”), em uma performance moderada, é uma mulher sem garra que aceita as posições do marido na criação da filha. Sem espaço para crescer e sem o apoio adequado, Maria se fecha, seja literalmente pela sua postura corporal, seja figurativamente ao não abordar seus sentimentos.

As dificuldades aumentam na escola. A adolescente tem uma amiga (no singular mesmo), mas não a ponto de ser uma grande amizade capaz de ajudá-la a lidar com o valentão que a maltrata na escola sem chance de reação. Porém, tudo isso muda quando Maria descobre que ela possui uma irmã gêmea, da qual jamais ouviu falar. A partir daí, a garota passa a ver em seu reflexo no espelho do banheiro a sua contraparte ideal: corajosa, autoconfiante e disposta a fazer tudo aquilo que sempre quis em seu íntimo.

Fora a metáfora mais recorrente da jovem que não consegue se reconhecer ou se aceitar diante da sua imagem no espelho, o próprio caminho percorrido por Maria até o banheiro é cheio de significado. O corredor escuro com a porta aberta funciona quase como um portal – é “a luz no fim do túnel” – guiando a personagem e a convidando para este lugar que ainda faz parte do casarão, mas permite que a protagonista veja e fale com algo a mais do que aquilo que está dentro das quatro paredes de sua casa.

Assim como as doenças mentais, gêmeos e espelhos são também artifícios presentes em uma infinidade de filmes de suspense e terror, pelo ar de misticismo que os rodeia. Se apenas um desses elementos seria o suficiente para criar uma história inteira com diversos desdobramentos, três deles poderiam dar ainda mais corpo para o filme. Entretanto, o roteiro de Bernstein falha ao tentar criar espaço para cada um deles separadamente, e também ao tentar unir esses elementos ao final. Ainda que a sequência de encerramento seja muito boa, o último terço carece de força.

Se o texto peca em trazer mais elementos do que foi capaz de desenvolver, apresentando até personagens que entram e saem da história sem mais nem menos, a equipe técnica consegue ser um destaque positivo, como na parte da ambientação com cenários, fotografia, figurino, maquiagem e, principalmente, com o som. Além da trilha sonora conseguir situar muito bem o filme e dar o seu tom, a sonoplastia de determinados momentos se sobressai ao traduzir o visual quase que angustiante dos diálogos da protagonista em frente ao espelho.

Este não é o tipo de longa que consegue prender o público na cadeira, criar uma tensão constante, ou impactar pelas cenas de violência e sustos. Trata-se de uma premissa comum e que rendeu obras clássicas, obras horríveis e outras esquecíveis, como parece ser o caso. “Não Olhe” nos convida a não lembrar.

Hiago Leal
@rapadura

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