Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 06 de março de 2019

De Canção em Canção (2017): cinema de improviso?

Questionar os questionamentos líricos de Malick sempre foi um exercício libertador, embora desafiador. Aqui, sua visão e seu estilo autoral tornam-se uma repetição contestável.

Alguns nomes do cinema, como Terrence Malick (“Amor Pleno”), estão acima de suas obras. Sua perspectiva artística sempre é mais debatida que a própria obra em si. Inevitavelmente, diretores como ele sempre são o centro da pauta., quase como se não desvinculássemos o criador da criação na hora da projeção. Isso parece intuitivo, mas acaba diminuindo o valor da obra. É impossível assistir um filme como De Canção em Cançãosem divagar sobre o que o diretor quis dizer em cada significado que permeia o longa. Seu estilo fragmentado e não linear é notório em toda sua filmografia, assim como o esforço de imprimir cargas sentimentais que transcendam a tela. Mas afinal, o que separa o abstrato do improviso casual?

Cá estamos no Texas, na badalada cidade musical de Austin, acompanhando dois casais num quadro amoroso entre bastidores de shows e mansões. Faye (Rooney Mara, de “Lion: Uma Jornada Para Casa”), a cantora em início de carreira esperando por seu momento, e BV (Ryan Gosling, de “La La Land: Cantando Estações”), o compositor inocente e apaixonado. O outro casal é composto por Cook (Michael Fassbender, de “Boneco de Neve”), o magnata inescrupuloso da indústria musical, e Rhonda (Natalie Portman, de “Aniquilação”), a garçonete iludida. Através de uma atmosfera de rock ‘n’ roll, eles perseguem o sucesso flertando com a sedução e traição. O elenco estrelado ainda conta com Cate Blanchett (“Thor: Ragnarok”), que chega para criar um triângulo amoroso com sua personagem Amanda.

O estilo peculiar de improviso do diretor diz muito sobre o resultado final. Acompanhado pelo excelente diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (“O Regresso”), a dupla gravou por 40 dias sem interrupção, capturando pequenos momentos da vida de cada personagem, o que acabou rendendo oito horas no primeiro corte. Em entrevista, Fassbender expressou sua felicidade de trabalhar na forma espontânea do diretor: “É realmente libertador quando você não carrega consigo um diálogo. Você está realmente vivendo aquele momento”.

Os personagens de “De Canção em Canção” não tem o típico arco de desenvolvimento comumente roteirizado, eles se dão em voice-overs e planos contemplativos em contra-plongée. Na trama e na sua filmografia, os personagens passivos como Faye, BV e Rhonda carregam um semblante infeliz. Já os que movem a narrativa (como Cook), são narcisistas e impulsivos. As tomadas flutuantes giram em torno dos atores propositalmente, indo e vindo como se fossem o centro do universo. Em sua obra mais conhecida, “A Árvore da Vida”, essa estética parece mais aprimorada e objetiva. Já aqui, ao fim da projeção, o estilo improvisado não convence substancialmente. Algumas cenas parecem desconexas, e nem o título faz jus a história. A trilha pouco agrega e as músicas apenas emendam as sequências.

BV não se prova como escritor, e Rhonda continua perdida. Cook continua sendo um estereótipo de produtores mal intencionados que são blindados por seu poder. E como de praxe, nenhum romance tem final feliz. Se por um lado as filmagens criam boas experiências para os atores, por outro muitas cenas soam como colagens de uma longa gravação sem pré-produção com storyboards. O diretor sabe situar seus personagens nos ambientes, cortando de uma multidão fervorosa para a solidão da casa com destreza. Em contraponto, não há sets que agregam personalidade, as locações aleatórias atenuam a encenação teatral. Parece uma insistência em criar momentos antológicos ao acaso.

Após duas horas de exibição, tanto os personagens quanto o expectador sentem um vazio existencial. Há muitos “eu te amo” ditos sem sentimento. Da mesma maneira que começou, Cook termina na mesmice de sua luxúria representada por ostentações. Já BV tem uma aproximação com a natureza, o que sugere uma leve liberdade. À Faye, só resta sua interminável narração filosófica. Em suma, rostos carismáticos não salvam um final vago e antipático. Malick não quer fechar a história de “De Canção em Canção”, pois ela fora imprimida como memória de uma América contemporânea vazia. Como significado, mais de uma vez os personagens observam uma constelação. Tais astros que são vistos da terra, e que, ligados por linhas imaginárias, formam diferentes figuras e se distinguem por nomes especiais. Estariam eles sendo representados pelas estrelas? A graça da arte parece estar nas perguntas, e não nas respostas. E a filosofia de questionar também cabe a obra de Malick, afinal, um artista que faz a mesma coisa durante a vida toda está se repetindo ou se aperfeiçoando?

Jefferson José
@JeffersonJose_M

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