Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Marvin (2018): um estranho em sua própria casa

"Marvin" traz uma mensagem de sucesso através da dor, ressaltando a importância do perdão.

Marvin” é um garoto homossexual. Ele possui uma família tradicional conservadora, preconceituosa, xenofóbica e racista. Morando em uma aldeia da Picardia, interior da França, o menino teve uma infância cercada de pobreza que veio acompanhada pela brutalidade e rejeição de um ambiente homofóbico. A produção começa com Marvin já adulto, relembrando a infância difícil onde sofria bullying no colégio. Quando retornava para casa em busca de afago, encontrava mais rejeição e ainda mais discussões, na maioria das vezes sobre coisas banais, que escondiam o verdadeiro problema.

O pequeno encontra seu refúgio na arte, quando uma nova diretora chega ao colégio e o apresenta ao teatro. Esta seria a escolha perfeita, pois Marvin poderia ser qualquer outra pessoa e utilizar dos palcos para fugir de um mundo cercado de tristeza e solidão. Ao invés disso, ele reproduz o que vive em casa em um grande trabalho de atuação da versão jovem feita pelo estreante Jules Porier. A direção e roteiro de Anne Fontaine (“Agnus Dei“) torna Marvin uma criança sensível, educada e tímida, se mostrando um alvo fácil tanto para os colegas – onde sofre todo tipo de represália sem reagir –, como em casa, onde é julgado pela família por ser “feminino” demais.

Tantas retaliações refletem em sua personalidade. Já adulto, ele tem receio de qualquer tipo de relação e estranha qualquer espécie de declaração ou demonstração de carinho. Ao mesmo tempo em que sofre, Marvin descobre a própria sexualidade. Atrelar essa descoberta aos seus agressores de infância não parece ser uma decisão muito sábia, quando claramente ela poderia vir de outras maneiras e não como uma espécie de síndrome de Estocolmo. Felizmente o conceito logo é abandonado e foca em Marvin (Finnegan Oldfield, “Nocturama“) crescendo como ator, ingressando em aulas de teatro profissional e cercado de pessoas igualmente quebradas como ele.

Mudando seu nome de Marvin Bijor para Martin Clement, o aspirante a ator e agora gay assumido renega todo o seu passado. Se antes havia sofrimento e angústia, agora ele se cerca de todo o bem que a vida pode oferecer, trabalhando em uma peça que retrata tudo aquilo que viveu, com a participação mais que especial de Isabelle Hupert (“Elle“) interpretando ela mesma. O tempo cura tudo, e isso funciona perfeitamente na vida do protagonista quando ele resolve retornar a um passado que decidiu ignorar. Falsos arrependimentos e mentiras cercam um já reconhecido Martin, e a temática LGBT que a produção trazia acaba ficando como pano de fundo para que os problemas familiares sejam tratados.

É como se o personagem tivesse que voltar ao passado e resolver suas questões mais íntimas, para que possa enfim seguir em frente. A fotografia parece um constante pôr do sol, como se a qualquer momento a vida de Martin fosse retornar a escuridão da noite, mas que pelo contrário, acaba se tornando uma história de como “vencer na vida”. Vitória que infelizmente veio através da dor, como se a genialidade de Martin tivesse origem em seu sofrimento e só assim ganhar o direito de contar sua própria história.

*Filme visto na edição de 2019 do MyFrenchFilmFestival.

Tiago Soares
@rapadura

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