Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Boy Erased – Uma Verdade Anulada (2018): tenso drama contra a incompreensão

Joel Edgerton adapta aos cinemas um relato dramático e pessoal sobre um rapaz ainda em construção de identidade que se submete aos horrores da terapia de conversão gay.

Jared (Lucas Hedges, “Três Anúncios para um Crime”) é um garoto educado, inteligente e de uma família “normal”, como diz sua preocupada mãe Nancy (Nicole Kidman, “Aquaman”). Ser “normal” no estado de Arkansas nos EUA envolve agir como um fiel cristão protestante, que no caso de Jared ainda é algo mais notável, pois seu pai Marshall (Russell Crowe, “A Múmia”) é um homem de negócios durante o dia e pastor evangélico em tempo integral. Como um “bom” filho obediente e sob ameaça de ser expulso de casa, o universitário aceita participar de um programa de terapia de “cura gay” depois de confessar para os pais que tem pensamentos homossexuais. As experiências de Jared durante esse período decisivo de sua vida são relatadas em “Boy Erased – Uma Verdade Anulada”, baseado no livro homônimo autobiográfico de Garrard Conley.

Ao tom da frieza com que Jared é recebido na instituição liderada por Victor Sykes, papel interpretado pelo próprio diretor e roteirista do longa Joel Edgerton (“Gringo: Vivo ou Morto”), sua câmera acompanha o garoto e os outros “clientes” como se estivessem numa prisão correcional. Pontuadas por uma trilha nervosa que parece querer preparar os espectadores para testemunhar grandes atrocidades, as cenas retratam crescentes abusos psicológicos, gerando uma tensão aumentada pelo fato de que Jared não está exatamente confinado. Hospedado com sua mãe num hotel próximo, ele quer se submeter ao processo de coração aberto enquanto a protetora Nancy o busca todo final de dia. À medida que ele processa suas experiências e fortalece sua identidade, as atitudes de Jared perante o programa se tornam mais resistentes e questionadoras, caminhando em direção a iminentes confrontos.

As condenáveis práticas de conversão gay são baseadas na premissa de que a atração pelo mesmo sexo é um comportamento que pode ser mudado. Se a dor de corromper a própria personalidade para não ser excluído da família já não bastasse, “Boy Erased” deixa claro o que é sofrer achando que não é uma pessoa digna em relação a sua religião. Particularmente no sudeste norte-americano, uma área conhecida como “cinturão bíblico”, as práticas evangélicas são fortemente arraigadas na cultura local e, dessa forma, a culpa por não ser considerado merecedor de participar dessa sociedade chega a ser o equivalente a não existir, justificando comuns casos de depressão e suicídio. O pesado e controverso tema também foi abordado por um outro filme de 2018, “O Mau Exemplo de Cameron Post”, estrelado por Chloë Grace Moretz e que compartilha até a mesma estrutura narrativa e dramática, mas com um tom menos angustiante.

Joel Edgerton submete seus personagens a uma sequência de insensíveis métodos terapêuticos num gradativo terror psicológico, cuja injustiça faz acumular um sentimento de revolta no público. Como Jared tem menos tempo de instituição que outros colegas já sofridos, sua inocência ao demorar a compreender a crueldade do local é desoladora. Como exemplo dos outros “clientes”, o dedicado à cura Jon, interpretado pelo também cineasta Xavier Dolan (“Maus Momentos no Hotel Royale”), é tão traumatizado que evita qualquer toque físico com outros homens. Já o jovem Gary (o cantor Troye Sivan, que empresta a voz para a bela canção tema do filme) prefere a desvirtuada estratégia de “fingir até convencer” e não abre mão de sua sexualidade. O elenco de múltiplos talentos ainda inclui Flea, o baixista da banda Red Hot Chili Peppers, como um instrutor exemplo de “como ser um homem” e quase capanga para o chefe Sykes. O personagem de Edgerton por sua vez tem seu próprio conflito com a homossexualidade sugerido por um sutil jogo de câmeras durante um monólogo de Flea.

O projeto de adaptar o livro de Garrard Conley às telas de cinema tem seu papel social ao ampliar o alcance da denúncia à desumanidade em torno das famigeradas terapias de conversão gay, especialmente as justificadas por crenças religiosas. Ao executar suas críticas através de uma sombria tensão acentuada, o diretor captura a atenção da audiência mais pelo estômago que pelo coração, preferindo o suspense ao melodrama, mas recompensa com a devida catarse de libertação ao final. O arco de aceitação de Jared inclui também como evolui sua relação com os pais, que são defendidos pelos atores de maior renome do elenco, Crowe e Kidman, porém, em pé de igualdade com o gracioso e sensível trabalho protagonista de Lucas Hedges.

William Sousa
@williamsousa

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