Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Vice (2018): a comédia do patético

Adam McKay novamente satiriza a história recente dos EUA, agora voltando seu olhar irônico e mordaz para Dick Cheney, o vice-presidente do governo George W. Bush.

Adam McKay (“A Grande Aposta“) vem construindo sua carreira recente dentro de um estilo rapidamente perceptível: sátiras sobre temas políticos ou econômicos da história contemporânea dos EUA, através de uma linguagem cômica, ágil e dinâmica que se comunica facilmente com o público em geral. Em “A Grande Aposta“, seu interesse foi a crise do mercado imobiliário a partir de 2008. Já em “Vice“, o assunto da vez é a figura de Dick Cheney – interpretado por Christian Bale (“Hostis”) – e sua participação em diferentes governos norte-americanos nas mais variadas funções, dentre elas a vice-presidência do governo Bush em 2001.

O filme se apresenta como uma cinebiografia da trajetória política de Cheney, mostrando o início como assessor e sua transição para outros cargos, como deputado federal, chefe de gabinete presidencial e, por fim, vice-presidente de George W. Bush (Sam Rockwell, de “Três Anúncios para um Crime“). Toda sua carreira contou com a influência do Secretário de Defesa Donald Rumsfeld (Steve Carell, de “Querido Menino“) e com o apoio da esposa Lynne Cheney (Amy Adams, de “Liga da Justiça“). Os bastidores do poder na Casa Branca são satirizados ao abordar o quebra-cabeça ardiloso para a formação de governos, aprovação ou rejeição de leis e concretização ilegal de interesses individuais. Tais práticas encontram seu ápice na narrativa durante a chamada “guerra ao terror” contra o terrorismo após os atentados às Torres Gêmeas em 2001, marcada pela deturpação de leis através de interpretações muito particulares e imorais.

Dick Cheney é retratado como um personagem patético: na primeira cena, está bêbado e gritando. Trata-se de uma fase fracassada de sua vida, em que parecia fadado à mediocridade. Após a ajuda da esposa, reergue-se e entra na vida política, tornando-se bem-sucedido ao agradar as pessoas certas e construir alianças importantes. Quando chega à vice-presidência, já desenvolveu uma personalidade fria, calculista e inescrupulosa, capaz das piores atrocidades de maneira furtiva. Muito da composição do personagem se deve a Christian Bale, que desaparece por trás de uma belíssima atuação: a voz rouca, a pouca articulação dos lábios, o ganho de peso e a gradual inclinação do corpo devido à idade. O trabalho de maquiagem e penteado também é fundamental, indicando a passagem de tempo, a crescente calvície e as faces volumosas.

O mundo à sua volta reforça a falta de escrúpulos graças às pessoas desagradáveis que o povoam. Lynne Cheney, vivida por Amy Adams, é o inabalável suporte do marido, que o instiga a conquistar e a manter o poder a qualquer custo, ao estilo de Claire Underwood da série “House of Cards“. Donald Rumsfeld, interpretado por Steve Carell, é um sujeito truculento e grosseiro que gera rápida antipatia por agir dentro de uma moral própria deturpada. E George W. Bush, vivido por Sam Rockwell, é um jovem inconsequente, desconhecedor das engrenagens da política e tratado por Dick como uma marionete que possibilita ao vice, de fato, governar o país. Em cada um desses atores, a maquiagem para envelhecimento também é muito eficiente, dando-lhes cabelos grisalhos e rugas na pele.

A linguagem dinâmica típica de Adam McKay aparece principalmente na montagem. Imagens não relacionadas à trama são inseridas através de cortes rápidos para criar metáforas ou piadas que explicam as ações dos personagens, acentuam as atrocidades feitas na política ou ridicularizam as figuras reais. Além disso, flashbacks e projeções de um futuro hipotético oferecem momentos diferentes da vida de Dick e mantêm a fluidez do ritmo, apesar das mais de duas horas de projeção. Entretanto, esses recursos levam a alguns problemas: o diretor explica excessivamente as piadas, como se não confiasse na compreensão do público e precisasse detalhar cada mínimo aspecto do humor, e apresenta muito abruptamente a crise do governo Bush, sem exibir propriamente sua queda de popularidade.

Outro elemento que define o humor geral é a própria direção. O deboche já aparece na abertura, com o letreiro que situa a cinebiografia de Dick Cheney e se estende na exibição de personagens em momentos nada simpáticos – por exemplo, o gargarejo do vice em um plano mais longo do que o usual. McKay também resgata dois recursos presentes em “A Grande Aposta“: o uso de diferentes formatos de imagem, como o próprio aspecto cinematográfico, registros reais de arquivo e a estética jornalista; e o emprego da narração em off e da quebra da quarta parede (quando o personagem fala diretamente para a câmera), responsáveis por comentários irônicos e exposições, por vezes didáticas até demais, dos acontecimentos.

Apesar de ser expositivo em excesso na construção do humor e de criar um retrato passivo da população norte-americana (considerada responsável pela ascensão de figuras como Dick Cheney devido ao desinteresse por algo complexo e desagradável como pode ser a política), “Vice” tem seus méritos. Especialmente ao esperar a cena durante os créditos, é possível constatar como o filme reconhece sua importância no contexto atual dos EUA: um tema político do passado não se esgota em si mesmo, ele é potencializado quando se relaciona com o presente.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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