Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

House of Cards (Netflix, 6ª Temporada): o castelo de cartas desabou [SÉRIE]

Apesar do esforço e dedicação de Robin Wright dentro e fora do set, a última temporada de "House of Cards" fica muito abaixo da qualidade apresentada no passado.

Responsável por colocar a Netflix no radar de muita gente lá em 2013, “House of Cards” foi inquestionavelmente uma das séries de maior sucesso dos últimos anos. Trazia, além do elenco de peso comandado pelo até então inquestionável Kevin Spacey, a produção de David Fincher (“Garota Exemplar”), um aparato técnico de muita qualidade, e, claro, uma história cativante. Toda aquela trama sobre corrupção e sede de poder, além do pano de fundo muito crível dos bastidores da política americana, seria a receita perfeita para brilhar. Arquitetada de forma magistral, a ponto de nos fazer ficar vidrados e ávidos por ver os próximos episódios, era praticamente impossível não “maratoná-la”.

Contudo, um mal comum às produções seriadas acabou se alastrando em “House of Cards”, e o nível até então altíssimo foi decaindo amargamente ao longo das temporadas. Antes magistral, passando por um período conturbado, mas que mantinha as esperanças dos espectadores devido ao apreço pela qualidade técnica, a obra rumou fundo em direção ao abismo, tornando-se quase que uma paródia de si mesma. E uma paródia muito mal feita, por sinal.

Depois da demissão do seu então astro (após a conduta detestável de Spacey fora das câmeras), “House of Cards” apresentava um futuro incerto. Seria esse o destino do primeiro filho bem-sucedido da Netflix, acabar sem um merecido final? Felizmente (ou não), graças à dedicação de Robin Wright (“Mulher-Maravilha”) – que vinha ano após ano roubando os holofotes para si – em manter centenas de empregos dos envolvidos na produção, a sexta e última temporada chegou. A promessa era encerrar ao menos o arco iniciado ainda nos primeiros episódios, mostrando o apetite insaciável dos Underwood pelo poder. Lamentavelmente, a nova leva de capítulos traz bem mais frustrações e decepções para os fãs da obra.

ATENÇÃO: O texto contém spoilers das temporadas anteriores de “House of Cards”.

Francis Underwood

Assim como o ator que lhe dava vida, o fantasma de Frank Underwood assombra muito esta última temporada. E não, “House of Cards” não virou uma série de terror – antes fosse – , mas é impressionante o quanto o roteiro não consegue se desvincular da dependência do personagem. A 6ª temporada começa meses após a morte do presidente (já revelada nos trailers), e mostra uma Claire assumindo o cargo como refém das promessas e acordos firmados por Frank ainda em vida.

Um dos elementos que faz a trama andar – nesse caso, rastejar – é justamente a dúvida sobre a morte do personagem. Nos primeiros episódios, não se sabe nem ao certo em que circunstâncias o corpo de Frank foi encontrado. Depois, algumas descobertas sobre, mas que logo são desmentidas. Parece que, na tentativa de construir um suspense, os roteiristas adicionam e retiram informações sem muita justificativa, causando ainda mais desinteresse pela história.

Os Shepherd

Claire luta em busca de uma voz própria, muitas vezes sem sucesso devido aos embates contra a família Shepherd – que surge absolutamente do nada, mas que os showrunners inserem como se fizessem parte da série desde sempre. A menor quantidade de episódios, embora importante para que os espectadores não abandonem a trama maçante no meio, fazem com que Bill (Greg Kinnear, “As Aventuras de Brigsby Bear”) e Annette Shepherd (Diane Lane, “Tully”) tornem-se irrelevantes e até mesmo irritantes ao público. E o que dizer de Duncan, filho de Annette, um jovem mimado tão descartável que some e reaparece na história sem fazer a menor diferença.

Essa necessidade de um antagonista claro não fez bem a “House of Cards”. Ainda que a segunda temporada tenha sido toda baseada no confronto entre Frank e Raymond Tusk (Gerald McRaney, da série “This Is Us”), muitas outras subtramas eram permeadas durantes os episódios. A própria primeira temporada mostrava bem isso, pois não havia um vilão de fato, mas apenas os obstáculos que os Underwood precisavam enfrentar para chegar ao poder. O que vemos agora é um claro enfraquecimento na criatividade da trama (provavelmente devido à saída de Beau Willimon, criador da série e showrunner até o fim da quarta temporada). A narrativa estabelece lados bem definidos, não permitindo que o espectador decida quem ele acha que merece sua torcida.

Personagens demais

Mesmo se tratando de uma série sobre os bastidores sórdidos da política americana, “House of Cards” sempre soube trabalhar muito bem seus personagens, dando backgrounds e tempo de tela suficiente para que nos importássemos, ou ao menos conhecêssemos mais sobre aquelas pessoas. Mas à medida que os anos passaram, eram inseridos cada vez mais personagens, e o cuidado com eles acabou sendo reduzido. Um exemplo visível é Doug (Michael Kelly, “Evereste”), um dos papéis mais reconhecidamente profundos de toda a série, mas que foi cada vez mais perdendo o brilho – mesmo tendo papel fundamental neste desfecho.

Tudo isso resultou em uma matança desenfreada e muito mal trabalhada na quinta temporada, que se mantém aqui. Antes, a morte era algo extremamente profundo e expressivo, vide os assassinatos de Peter Russo (Corey Stoll, “O Primeiro Homem”) na primeira, e de Zoe Barnes (Kate Mara, “Quarteto Fantástico”) na segunda temporada. Depois, matar virou algo totalmente banal, tornando-se apenas mais uma ferramenta para o fraco roteiro das temporadas seguintes.

Veredito

É verdade que a sexta temporada de “House of Cards” possui qualidades: um episódio ali, uma cena acolá. A cena do uso do feminismo a seu favor, por exemplo, além de excelente, reitera toda a astúcia de Claire em usar o sentimento feminino como vantagem pessoal (como ela já havia feito anteriormente ao usar a morte da mãe para conquistar a indicação ao posto de candidata a vice-presidente no fim da quarta temporada).

Mas a queda de qualidade é visível. A obra não sabe nem ao menos o que quer ser, pois se vende como um desfecho para a história dos Underwood e nem isso é capaz de entregar (existe espaço para uma continuação que, embora surpreendente, não pode ser descartada). Robin Wright tenta, e sua Claire encontra bons momentos, mas nem uma atuação digna é capaz de salvar essa que foi, mas atualmente está bem longe do que se considera uma boa série. Uma pena uma produção de tamanha qualidade se encerrar assim.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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