Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 08 de janeiro de 2019

Shirkers – O Filme Roubado (Netflix, 2018): fazendo as pazes com um incrível passado

Uma talentosa cineasta singapuriana exorciza sua frustrante e fantástica história sobre a produção (e o sumiço) de um filme numa bela e intrigante narrativa documental.

Aos dezoito anos, Sandi Tan escreveu, produziu e protagonizou uma obra com potencial vanguardista na Singapura de 1992. Ela se juntou a um enigmático professor de cinema e a duas amigas talentosas e resilientes como ela para fazer um road movie escapista chamado “Shirkers”, que nunca foi finalizado porque sumiu com o professor e também diretor do projeto, Georges Cardona. “Shirkers – O Filme Roubado” é um documentário realizado pela própria Sandi entre tons de nostalgia e filme noir sobre a produção e o misterioso desaparecimento das películas.

A documentarista narra a obra disponível na Netflix e conta a história a partir de sua adolescência fervente de ideias e faminta por expressão. Foi nessa época que ela conheceu Jasmine, uma garota tão brilhante quanto Sandi apesar das distintas origens familiares. Na casa menos tradicional de Jasmine, as meninas brincavam livremente construindo “templos” para “deuses do Teatro e do Cinema”, no lugar de casas para bonecas, e driblavam com criatividade as dificuldades de consumir filmes internacionais. A maneira que Sandi comenta como ela e a amiga produziam textos e colagens para publicações alternativas na juventude, desviando de censuras apesar do sexo e da idade, é refletida na inventividade da edição do longa. Sandi imprime uma certa melancolia positiva ao retratar seu passado antes de pintar com toques de mágoa os acontecimentos em torno da produção do filme desaparecido.

As adolescentes conheceram Georges Cardona num curso de cinema que ele havia montado em Singapura. Com uma personalidade misteriosa e, de acordo com as meninas, uma estranha dissonância entre seus olhos frios e sua atitude carinhosa, o homem mais velho passava dias inteiros com Sandi, Jasmine e a nova companheira Sophia, filmando o interior do pequeno país enquanto sua esposa e bebê o esperavam em casa. No entanto, as sementes de “Shirkers” só apareceram quando o grupo de cineastas se separa para formalizar os estudos. Sandi vai para o Reino Unido enquanto as amigas vão para a América e Georges permanece em Singapura, mas combinam uma viagem de carro pelos Estados Unidos, para a qual só foram Sandi e Georges.

É neste momento que o já intrigante relato se inspira na estética noir para contar mais sobre o antagonista de “Shirkers – O Filme Roubado”, suas envolventes, porém, questionáveis histórias, e como a road trip impulsionou a produção do filme em questão. Como a documentarista expõe sua voz como narradora, é interessante notar a responsabilidade que ela traz para si sobre os conflitos consequentes das ações de Georges. Até a amizade entre eles é tratada como algo que Sandi “deixou” acontecer. Com o roteiro e o plano de produção de “Shirkers” em mãos, Sandi combina o retorno à Singapura com Jasmine, Sophia e Georges para as gravações do que seria o primeiro longa-metragem da talentosa trupe.

Sobre a escalação do elenco não profissional de “Shirkers”, a documentarista se compara ao “Apanhador No Campo de Centeio”, personagem do autor J. D. Salinger, mas a alcunha também é apropriada pela façanha de capturar em imagens uma Singapura antiga, “real e imaginária”, como numa cápsula do tempo. Apesar de se tratar de um passado recente, o país asiático sofreu incríveis transformações urbanísticas nas últimas décadas. Tal retrato quase imaterial de um clima e de uma época só acentua a dor do fato de que Sandi não conseguiu finalizar o filme. Ao término das conturbadas gravações, as garotas voltaram para as suas universidades e deixaram o áudio capturado e os rolos com as películas para Georges fazer a montagem em Singapura, só que sem suspeitar que o misterioso professor sumiria do mapa levando consigo o material completo de “Shirkers”.

Os espectadores podem concluir pelas imagens desde o início do documentário que o filme roubado não ficou perdido para sempre. A documentarista relata suas tentativas de superar as consequências negativas do traumático evento em sua carreira, mas os rolos reapareceram tardiamente e voltaram para as mãos das responsáveis. Sandi então se permite direcionar o documentário para tentar entender a pessoa de Georges Cardona e o que poderia ter motivado suas ações, e celebra a sobrevida das imagens da sua obra por sorte do destino.

Apesar da tragédia pessoal, “Shirkers” rendeu uma conexão profunda entre os envolvidos e um registro histórico, ao mesmo tempo factual e mágico, de uma Singapura pregressa. Já o filho documentário, “Shirkers – O Filme Roubado”, torna notável o talento de Sandi Tan escondido do mundo até então, não só no visual criativo da montagem, mas no clima criado através da sua própria narração, completamente imersiva pela sua entonação vocal. O relato que assombrou a vida da documentarista e as imagens gravadas naquele infortunado verão de 1992 podem ser finalmente apreciados por um grande público.

William Sousa
@williamsousa

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