Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A Primeira Noite de Crime (2018): raízes de um futuro próximo?

O filme une suspense, terror e ação para contar a origem do Expurgo, com fortes pinceladas de crítica social sem perder a unidade da franquia "The Purge".

A Primeira Noite de Crime” é o quarto filme da franquia “Uma Noite de Crime” criada por James DeMonaco que usa uma sociedade distópica como pretexto para cenas de violência e terror. Nessa sociedade alternativa dos EUA, qualquer tipo de crime é legalizado durante uma noite conhecida como Expurgo (The Purge, em inglês) e esta sequência, uma prequela na verdade, narra os acontecimentos em torno da primeira noite teste do evento.

De acordo com os novos líderes norte-americanos, os cidadãos precisam se livrar de uma raiva crônica causada pelo conjunto de problemas existentes como desemprego, epidemia de opioides e crise financeira. Para que os Estados Unidos se renovem e possam “sonhar de novo”, a lógica deturpada da violência libertadora como forma de catarse social tem como alvo do evento teste a ilha-bairro nova-iorquina de Staten Island. A partir de então o filme fundamenta uma série de críticas à opressão política e racial, uma vez que os moradores de Staten Island são de maioria negra e latina, grupos historicamente perseguidos no país.

Ao apresentar os personagens que irão exercer papéis de destaque durante o Expurgo, o roteiro de “A Primeira Noite de Crime” demonstra bastante autoconsciência e esperteza ao ilustrar a posição moral de cada um, ao mesmo tempo que justifica as ações que estão prestes a ocorrer, protegendo assim a “suspensão da descrença” do espectador. No lado dos moradores estão a ativista Nya (Lex Scott Davis, “Superfly”) e o chefe do tráfico Dmitri (Y’lan Noel, “Slice”). Apesar de significarem polos opostos em relação aos valores da comunidade, os dois formam a resistência contra a escalada de violência. No lado dos políticos está Marisa Tomei (“Homem-Aranha: De Volta ao Lar”) como Drª. May, a cientista arquiteta do abominável experimento comportamental.

Após estabelecer os motivos da permanência de cada personagem na ilha, o longa trabalha o suspense com eficácia ao transformar lentamente o tom principal de crítica social para o caos de explosões e tiroteios. A transição é assustadora, pois passa por personagens maníacos mascarados buscando satisfazer suas loucuras e lembrando o horror original de “Uma Noite de Crime”, mas a história logo chega aos elementos da luta por sobrevivência estilo “Battle Royale”. É muito curioso e intrigante como esse subgênero de ação se tornou extremamente popular na década de 2010 tanto em sagas de livros, como “Jogos Vorazes” e “Maze Runner”; séries de TV, como “The Walking Dead” e “The Purge”, que inclusive faz parte da franquia “Uma Noite de Crime”; em filmes, por exemplo, “Green Room – Sala Verde” e “Expresso do Amanhã”; e games como “Fortnite”, “Far Cry” e “Battlegrounds”.

Também não por coincidência, no mesmo ano do lançamento de “A Primeira Noite de Crime”, 2018, outros títulos sobre resistência a perseguições e injustiças também foram predominantes como em “Ilha dos Cachorros” e, especialmente contra negros, em “O Ódio Que Você Semeia”, “Infiltrados na Klan”, “Sorry To Bother You” e “Pantera Negra”. O que todos esses filmes têm em comum parece ser uma resposta em coro a mudanças de direção política dos Estados Unidos representadas pelo presidente Donald Trump. Ainda sobre os comentários sociais, o filme traz argumentos interessantes sobre como a crueldade da essência humana é intensificada pela anonimidade e predominaria se não houvesse a moralidade ou dogmas religiosos. Porém, ele é expositório e prefere fazer suas críticas pelas vozes dos personagens em vez de confiar na percepção do espectador sobre o que acontece nas entrelinhas.

Assim como a série “Black Mirror”, os filmes de “Uma Noite de Crime” não costumam ser esperançosos, mas a construção dos heróis de “A Primeira Noite do Crime” faz com que torçamos por eles mesmo já sabendo pelas obras anteriores que o Expurgo veio pra ficar por mais tempo. Apesar da troca de direção – James DeMonaco cede a liderança do quarto filme para Gerard McMurray (“Código de Silêncio”) – elementos como as cenas de violência estilizadas, as máscaras bizarras e a paleta verde e das cores da bandeira norte-americana ainda mantêm a unidade da franquia. No entanto, à medida que o fim se aproxima e a bestialidade se intensifica, o longa perde a inspiração e só repete a selvageria já vista anteriormente.

William Sousa
@williamsousa

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