Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 05 de dezembro de 2018

Serei Amado Quando Morrer (Netflix, 2018): um recorte valoroso sobre o legado de Orson Welles

Documentário sobre os bastidores da realização de "O Outro Lado do Vento" (des)constrói o mito com muito bom humor, doses de melancolia e depoimentos enriquecedores.

Orson Welles é um mito. Uma figura peculiar que Hollywood ajudou tanto a endeusar como também lhe virou as costas. O ator, diretor e roteirista do consagradíssimo “Cidadão Kane”, considerado até hoje, por muitos, um dos melhores filmes de todos os tempos, disse certa vez durante uma entrevista “a produção seguinte sempre seria a melhor”. Ela veio pouco mais de 40 anos depois. Se “O Outro Lado do Vento”, a obra em questão, é a sua mais formidável, só o tempo dirá. Enquanto isso, para entender sobre esse agitado último capítulo da vida de Welles, a Netflix bancou “Serei Amado Quando Morrer”, um documentário ágil e valioso que passa a limpo com bom humor e sentimento a mente peculiar do lendário diretor, e os bastidores da criação de sua derradeira obra-prima.

Em 1970, Orson Welles retornou à América, após um período de 20 anos na Europa, com o intuito de emplacar uma produção que o colocasse novamente sob os holofotes. A partir da premissa “um filme dentro de outro filme” nasce uma produção realizada entre 1970-76, mas que por conta de vários imbróglios, brigas na justiça e, mais tarde, a morte de seu idealizador, teve que ser paralisada. Conduzido com elegância por Alan Cumming (“A Guerra dos Sexos”), “Serei Amado Quando Morrer” percorre os últimos quinze anos da vida do mítico diretor através de depoimentos e filmagens antigas, enquanto ele fixa suas esperanças nesse retorno à Hollywood com um longa sobre um diretor de cinema (John Huston, “O Tesouro de Sierra Madre”) que está tentando terminar seu último grande trabalho.

Este documentário, dirigido de maneira muito eficiente – e que agradaria até mesmo ao seu protagonista – pelo experiente Morgan Neville (“Won’t You Be My Neighbor?”), passeia com entusiasmo e muita emoção pelos diversos conflitos internos e externos, escolhas equivocadas e dramas corriqueiros de Welles, não somente enquanto ele liderava a produção de “O Outro Lado do Vento”. Apresentando inúmeras entrevistas, tanto atuais como também por meio de imagens recuperadas, com pessoas que vivenciaram a árdua jornada que permeou seu inacabado projeto, o espectador é impactado com um estudo intimista sobre a personalidade do diretor durante os anos finais nos quais lutava com unhas e dentes para concluir algo que em dado momento parecia improvável.

Entre vivos e já falecidos, Dennis Hopper, Larry Jackson, Henry Jaglom, Peter Jason, Oja Kodar, Rich Little, Frank Marshall e Joseph McBride, todos atores de “O Outro Lado do Vento”, além de Cybill Shepherd (“Taxi Driver”) e Beatrice Welles, filha de Orson, oferecem testemunhos engrandecedores, e por vezes reveladores, que colaboram para expandir a mente visionária do destemido diretor. Porém, em meio a tantas declarações, é natural que algumas acabem se destacando, e elas vem justamente de duas das pessoas mais importantes daquele processo. Uma delas é Gary Graver. O ator e diretor de fotografia de “O Outro Lado do Vento” se tornou amigo fiel de Orson Welles numa das épocas mais complicadas do mito, e por isso, é o responsável por algumas das falas mais tocantes do longa-metragem.

O outro que recebe maior visibilidade não poderia ser ninguém diferente de Peter Bogdanovich (“A Última Sessão de Cinema”). Peter possui umas das histórias mais curiosas reveladas pela narrativa: inicialmente foi escalado para viver uma espécie de escritor no filme, profissão que já exercia na época, mas quando Rich Little deixou a produção devido a conflitos de agenda três anos mais tarde, Peter se ofereceu e foi prontamente aceito para fazer o papel de um renomado diretor de cinema, coisa que ele era naquele momento. Seu envolvimento com o roteiro e o diretor no intervalo em que participavam do filme rendeu uma belíssima amizade, uma espécie de relação mentor-pupilo, a qual é evidenciada através de depoimentos alegres e emocionantes de Bogdanovich, que provavelmente são o ponto alto deste documentário.

Assim como o multifacetado “O Outro Lado do Vento”, “Serei Amado Quando Morrer”, apesar de alguns devaneios, revela-se um filme fundamental para entender o legado de Orson Welles e o que a sua filmografia representava para ele e o seu público. Dizem que conhecemos a verdade nas pessoas quando elas estão passando por situações complicadas em suas vidas. Ora, se esse documentário não abrange a vida toda de Welles, ao menos oferece um olhar profundo sobre o momento mais interessante dela, com tudo que se tem direito: alegria, filosofias, melancolia, traição e acima de tudo, o que ele mais prezava, uma boa e devotada amizade. Nem só de “Cidadão Kane” vive o homem (ou se vive, afinal?).

Renato Caliman
@renato_caliman

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