Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 20 de novembro de 2018

Anon (Netflix, 2018): proposta boa, roteiro fraco

Longa promete ao tratar da ausência de privacidade com investigação policial, mas decepciona no roteiro.

O advento da internet foi algo que mudou o mundo. Revolucionou a maneira como recebemos e buscamos informações, inovou os meios de comunicação, até nascer o que conhecemos hoje por redes sociais. O mercado de entretenimento sempre surfou nessas ideias, fazendo críticas e mostrando pontos de vista sobre o uso da tecnologia – e ganhamos grandes obras cinematográficas graças a isso, seja na interferência direta da tecnologia na sétima arte, seja na licença poética para construir um universo. Em contrapartida, a qualidade do que já foi feito e o uso extremo da tecnologia só aumenta a expectativa para tudo o que estiver por vir, e isso pode ser um problema, e traz grandes desafios para o roteiro. É o que acontece em Anon.

O longa nos apresenta um universo onde não existe privacidade. Os cidadãos utilizam uma espécie de sistema que, através da vista, é possível obter todos os dados de tudo o que se vê, inclusive lembranças. Na trama acompanhamos o detetive Sal Frieland (Clive Owen, “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas”), que possui um trabalho muito confortável devido à tecnologia, permitindo-o enxergar as memórias de terceiros. Até aparecer uma série de assassinatos onde o assassino hackeia o sistema da vítima, fazendo-a enxergar através do seu ponto de vista, ficando desnorteada – e impossibilitando a captura do criminoso. Assim começa o quebra-cabeça que deve ser montado pelo detetive supervisor Charles Gattis (Colm Feore, da série “House of Cards”), o analista tecnológico Lester Goodman (Joe Pingue, “O Quarto de Jack”), juntamente com Sal.

O diretor Andrew Niccol (“A Hospedeira”) traz uma proposta que promete um grande filme. A filmagem das cenas inova ao mostrar o ponto de vista dos personagens, com os dados do que eles vêem. Essa ferramenta é utilizada como recurso narrativo, e pelo fato da história depender dela, precisa se reinventar dentro do longa, e se torna previsível como será utilizada mais a frente. E isso também torna fácil de antever como a trama irá se desenrolar. Há momentos bons e cenas que trazem certo suspense, mas as sequências e soluções nunca surpreendem. Até mesmo no terceiro ato, ainda que seja uma surpresa, não é nada que já não estivesse sendo esperado.

Ainda que o roteiro deixe a desejar, Amanda Seyfried (“Mamma Mia! Lá Vamos Nós de Novo”) faz muito bem sua parte e entrega uma personagem que antagoniza bem com o detetive Sal, também bem interpretado por Clive Owen. A personagem de Amanda prende o espectador, que anseia por descobrir sua identidade. E nisso o roteiro acerta, carregando esse segredo até o fim, passando a mensagem sobre a privacidade que nos é roubada pela tecnologia, onde se torna um pecado o desejo por ela.

Mas o erro principal talvez esteja dentro da própria Netflix. Quando se trata de inovações tecnológicas e/ou críticas sobre o uso delas, as comparações com o fenômeno “Black Mirror” são inevitáveis. A sensação que se tem ao longo de toda a produção é que ela funcionaria muito melhor se fosse apenas um episódio da série. Há cenas que poderiam ser facilmente evitadas, sem prejudicar muito a narrativa (inclusive envolvendo ambos os atores elogiados acima), ou até mesmo substituídas por outras ideias que pudessem desenvolver melhor a trama.

“Anon” apresenta uma proposta inovadora, tanto intelectualmente quanto tecnicamente. Em certos momentos, anima e consegue comunicar a crítica que faz sobre o uso atual da tecnologia. Mas o desenvolvimento da trama decepciona e se torna incapaz de surpreender quem assiste; mais uma obra prejudicada pelo grande desafio deixado como legado das boas produções anteriores, mas, principalmente, pelo próprio roteiro.

João Victor Barros
@jotaerrebarros

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