Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 20 de novembro de 2018

Apóstolo (2018): potente no tema e no estilo

O longa trabalha com o terror psicológico e gráfico para contar uma história sobrenatural sobre os mistérios de um culto religioso em um vilarejo inglês de 1905.

O fanatismo religioso não é exclusividade de nenhuma forma de fé em especial. Religiões das mais diversas origens e características podem ser deturpadas por indivíduos cegos pela pretensão de grandeza ou pelo preconceito ao diferente. Esse tema é o mote de “Apóstolo“, dirigido e roteirizado por Gareth Evans (“Operação Invasão”), combinando o terror psicológico e o horror ao longo de toda a narrativa de maneira extremamente orgânica.

Na Inglaterra em 1905, Thomas Richardson (Dan Stevens, “A Bela e a Fera”) viaja para uma ilha remota em busca de sua irmã, raptada por um misterioso culto religioso. No local, ele se infiltra na comunidade e passa a conhecer a seita, os moradores e os líderes Malcolm (Michael Sheen, “Passageiros”), Quinn (Mark Lewis Jones, “Crimes Ocultos“) e Frank (Paul Higgins, “Victoria e Abdul“). Além de tentar resgatar a irmã, Thomas também desenterra as mentiras sobre as quais o culto foi criado. Na primeira metade do filme, Gareth Evans se dedica a construir uma atmosfera de estranhamento e tensão lenta e cuidadosamente: fornece pistas de como aquela religião é praticada, através de planos gerais, tomadas aéreas e movimentais laterais e sutis da câmera, que promovem a imersão do público na comunidade. Não apenas apresenta sua mitologia, como também indica o perigo por trás dela através de imagens sugestivas de vultos misteriosos e sacrifícios de sangue.

Os primeiros minutos do longa também servem para apresentar a eficiente recriação de época realizada. O início do século XX é percebido pelo design de produção, gradualmente mais lúgubre e amedrontador, e pelo figurino evocativo de seu período histórico. O vilarejo onde a trama se passa é situado no meio de uma floresta decadente com solo praticamente infrutífero, assim como abriga prédios opressivos e portadores de um aspecto sobrenatural, como se nota na igreja principal e no armazém afastado. O vestuário, além de representar o estilo sóbrio da época, também simboliza muito bem os traços identificadores de cada membro da comunidade: os camponeses com roupas simples e desgastadas pelo tempo, os três líderes com trajes sérios dignos de uma autoridade, e os carrascos com suas vestimentas macabras durante uma sessão de “purificação” da alma de um jovem local.

A qualidade narrativa é igualmente garantida pela trilha sonora instrumental. Ela é utilizada em momentos pontuais para imprimir o ritmo desejado a cada momento, valendo-se de diferentes instrumentos e da alternância entre notas graves e agudas. O incômodo inicial de Thomas é criado pelos planos longos embalados por notas angustiantes de um instrumento de corda; o mistério pela descoberta gradual da seita é construído com uma leve aceleração do ritmo musical; e o terror da revelação das práticas ocorridas no lugar é estabelecido com notas agudas aceleradas ao máximo.

À medida que a narrativa se desenrola, o protagonista passa a ser perseguido pelos líderes religiosos, que descobrem suas reais intenções, e recebe ajuda apenas da filha de um deles, Andrea (Lucy Boynton, “Bohemian Rhapsody“). É na segunda metade do filme que informações um pouco mais detalhadas sobre o culto são fornecidas, sendo possível compreender como a crença em determinada divindade e os rituais prestados a ela são interpretados como condição essencial para a sobrevivência da comunidade. Nesse instante, o tema do fanatismo religioso é trabalhado em duas camadas distintas, porém igualmente importantes: a figura de Malcolm como um profeta carismático que seduz os moradores graças à sua oratória de igualdade, e a imagem de Quinn como a autoridade despótica que se perde em um acesso violento de loucura. A partir daí, “Apóstolo” deixa um pouco de lado a sugestão do terror psicológico e abraça o horror com cenas violentas, chocantes e explícitas, todas elas compatíveis com os excessos supostamente justificados pelo culto.

Atravessando os dois momentos de estilos diferentes do filme, estão algumas atuações competentes e outra nem tanto assim. Michael Sheen e Mark Lewis Jones traduzem muito bem os diferentes tipos de liderança e fanatismo que carregam, através do carisma sedutor aparentemente pacífico do primeiro, ou da brutalidade incontrolável do segundo em busca da verdadeira religião. O problema no elenco fica por conta do protagonista vivido por Dan Stevens, encarnando, durante muito tempo, uma persona de trejeitos exagerados em um overacting que o impede de dar nuances ao personagem.

Mesmo tendo alguns elementos do roteiro que precisariam de um desenvolvimento melhor, entre eles o objetivo do rapto da irmã do protagonista e as relações entre a comunidade e o mundo exterior (ponto sugerido rapidamente com uma tentativa de atentado a Malcolm), “Apóstolo” é um terror com uma identidade própria e muita qualidade. A alternância de estilos é uma mostra de como trabalha bem a direção e o roteiro para dar conta de um tema espinhoso e complexo. Ao final, sua mensagem de que a fé mal interpretada e praticada pode levar os indivíduos a perderem todo e qualquer rumo é transmitida eficientemente.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe