Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A Casa Que Jack Construiu (2018): detestável obra de arte

Exceto como uma possível reflexão alegórica sobre a própria filmografia do diretor, a história de um serial killer que tenta legitimar seus atos como obras de arte é intragável para espectadores que buscam diversão.

Lars von Trier largou “A Casa Que Jack Construiu” nos cinemas e saiu correndo. Para engolir esse filme, é imperativo que se tenha algum conhecimento sobre a linha do diretor de “Dogville” e “Dançando No Escuro“, ou pelo menos sobre o conteúdo asqueroso da obra, para não se tornar mais um espectador na grande fila de pagantes que abandonam a sala no meio da sessão por pura repugnância. Há algo na criação do diretor dinamarquês que provoca reações sobre a história de um assassino serial que narra seus horrendos atos enquanto defende suas visões de mundo.

Jack (Matt Dillon, “Crash – No Limite”) é um soberbo ninguém que diz ser engenheiro aficionado por arquitetura. Consciente de sua incapacidade de sentir empatia, ele é um sociopata assumido que encontra num interlocutor misterioso (Bruno Ganz,  “Asas do Desejo”) uma chance de justificar para alguém suas atrocidades, preferindo chamá-las de “obras”, como as de arte e de construção. Esse diálogo acontece em off, fora do que se vê em tela, entre as encenações dos “incidentes” narrados por Jack e compilações de imagens que ilustram sua argumentação associando seus assassinatos aos diversos tipos de arte, como música, pintura, fotografia, literatura e arquitetura. Misturar diálogos confessionais com representação dos fatos não é novidade para Lars von Trier, já que ele praticamente reproduz aqui o mesmo método narrativo do seu filme anterior “Ninfomaníaca”. A propósito, essa é só uma das autorreferências do diretor ao longo de “A Casa Que Jack Construiu”.

Diferente do clichê “frio e calculista”, Jack não é tão brilhante como acredita ser. Seus planos caem em improvisos mal pensados que só se sustentam pela gélida atitude, desconcertante para quem tenta entendê-lo. Seu transtorno obsessivo-compulsivo por limpeza se confunde com meticulosidade e evolui para um quase desespero para ser capturado e reconhecido. Como engenheiro aspirante a arquiteto, ele não deveria ter nenhuma dificuldade para construir a casa que tanto quer, mas não é isso que as imagens nos mostram. Por esses motivos, como narrador, Jack não é confiável, e tudo que ele diz não deve ser interpretado ao pé da letra. Assume-se então que tais contradições sejam um convite para observá-lo de outra maneira, não literal. A saber, essa camada extra de possível leitura se encontra no próprio diretor e sua trajetória.

Em 2011, durante o Festival de Cannes, Lars cometeu sincericídio ao dizer que “entendia” e “simpatizava” com Hitler. A declaração não caiu bem e, como consequência, o diretor se tornou persona non grata no Festival. A verdade é que o cinema de von Trier nunca foi fácil de digerir. Causando antipatia, desprezo e ojeriza mundo afora, seus filmes abordam temas e emoções desagradáveis e pungentes, para muitos sequer suportáveis, como depressão, luto, morte e violência realista. Assim sendo, não parece acaso que as verborrágicas divagações grandiosas de Jack também sirvam como recipientes para Lars justificar indiretamente seu próprio trabalho. Também não parece por acaso que o ator escalado para ser o contraponto de Jack nos diálogos, Bruno Ganz, seja mundialmente conhecido por protagonizar o filme “A Queda! As Últimas Horas de Hitler” como o próprio führer – o diretor nem faz questão de manter a sutileza neste ponto e insere Adolf e outros líderes totalitaristas explicitamente na retórica de Jack. Perdoado pela gafe, “A Casa Que Jack Construiu” marcou o retorno de Lars a Cannes anos depois do “incidente”.

Como exemplo da dialética que estrutura o filme, enquanto a voz de Ganz afirma que “sem amor não há arte”, Jack amplia o conceito fundamentando que arte é diversamente vasta, devendo assim incluir as obras do seu alter ego por mais desagradáveis que sejam. O assassino também argumenta sobre a beleza do negativo fotográfico, onde o preto e branco trocam de posições e a luz se torna escura. Da mesma forma, há beleza na escuridão dos trabalhos de von Trier, pois lidam com sentimentos humanos, mesmo os mais horríveis. Não falar sobre eles é restringir o alcance da expressão artística e impedir que o público interessado nessas áreas dolorosas da vida possam exercitá-las na segurança de uma sala de cinema ou no conforto do lar.

Leituras extras à parte e descontando a mão pesada na misoginia descarada do roteiro, von Trier, Dillon e o elenco coadjuvante fazem um ótimo trabalho vendendo as digressões e transgressões do serial killer. O exercício eficaz de elementos de gênero, como a comédia mórbida por repetição e ironia, e também o suspense com a construção e manutenção da tensão que antecipam os crimes, é puro mérito do diretor. É inegável que ele sabe fazer cinema. A única questão é “quem sobra para assistir?”. Sendo contundente como Lars, já dizia o poeta brasileiro Mário Quintana: “quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro”.

William Sousa
@williamsousa

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