Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 02 de novembro de 2018

Te Peguei! (2018): uma comédia para a criança interior

A comédia preocupada com a criança que existe no interior de cada adulto derrapa nas passagens mais dramáticas, porém acerta na ode à amizade e no nonsense.

A transição para a vida adulta apresenta seus percalços e desafios, especialmente quando se trata de lidar com eventuais perdas e mudanças profundas. Um grande exemplo é o destino que algumas amizades construídas na infância têm com o passar do tempo: qualquer pessoa pode se lembrar de algum amigo do passado, muito próximo e querido, que se distanciou por alguma razão; assim como, pode se identificar com a ideia de tentar preservar ao máximo as amizades do tempo de criança. É por essa linha que segue a comédia “Te Peguei!”.

O filme se inicia mostrando o hábito desenvolvido por um grupo de cinco amigos, enquanto ainda estava na escola: brincar de pega-pega. Apesar do envelhecimento pelo qual cada um deles passa, a brincadeira não desaparece e eles mantêm a tradição de se reunirem, ao menos uma vez por ano, para brincarem. Eles se tornam adultos e continuam se encontrando com esse objetivo. A premissa da comédia pode ser muito bem resumida pelas duas frases que abrem o longa no formato de voice over: “não paramos de brincar porque envelhecemos. Envelhecemos porque paramos de brincar”. Através delas, é possível compreender o porquê de manter o passatempo vivo: conservar o sentimento juvenil que ainda carregam e preservar o contato entre todos.

Na fase adulta, a brincadeira ganha uma nova proporção. Hogan (Ed Helms, “Se Beber, Não Case”), Bob (Jon Hamm, “Em Ritmo de Fuga”), Randy (Jake Johnson, “A Múmia”) e Kevin (Hannibal Buress, “Baywatch: S.O.S Malibu”) continuam tentando, pela primeira vez, pegar Jerry (Jeremy Renner, “Terra Selvagem), que passou toda sua vida escapando sem ser sequer tocado. A oportunidade então aparece: o casamento de Jerry, em que ele estaria, supostamente, despreparado. O ponto mais alto do roteiro é a escolha de situações completamente absurdas e de ações inusitadas durante o pega-pega: vale tudo para não ser pego, desde perseguições arriscadas com saltos e pulos perigosos, disfarces, brigas e até atitudes que põem em risco o emprego ou a continuidade de uma sessão de terapia. À primeira vista, todo o nonsense pode causar um estranhamento, contudo ele passa a ser orgânico dentro da narrativa e produz momentos de humor genuíno. O tom ridículo aumenta nas perseguições a Jerry, mostrado quase como um super-herói capaz de grande velocidade e de desaparecimentos misteriosos em ambientes fechados.

A maneira como as sequências de pega-pega são filmadas tem suas oscilações, apesar de conseguir criar humor em alguns momentos. O diretor estreante Jeff Tomsic acerta quando diversifica suas técnicas e trabalha com o slow motion, os planos detalhe em partes do corpo dos personagens e na voz over de seus pensamentos. Porém, ele falha quando utiliza recursos uma única vez (ou em pouquíssimos instantes) e os abandona pouco tempo depois: são os casos da câmera na mão filmando Randy em close enquanto corre, e de efeitos em formato de cortina para a montagem da passagem das cenas.

Mas é na transição do segundo para o terceiro ato que o desenvolvimento da história e as piadas sofrem uma queda. Existe um acréscimo de drama, de seriedade e de tentativas de humor com assuntos complicados (aborto, por exemplo), que não combinam com a abordagem leve e descompromissada do início do filme. O fato de o pega-pega ser liderado por Hogan em função de um aspecto de sua jornada pessoal também acentua o elemento dramático fora de sintonia e inserido de forma apressada na narrativa.

Em relação aos personagens em si, existem também descuidos por parte do roteiro. No elenco masculino, eles são superficiais; no feminino, em geral, pouco contribuem para a trama. As personalidades dos amigos são construídas de modo simplificado: Jerry é o sujeito a ser pego e é descrito como alguém misterioso que pode armar qualquer coisa no pega-pega; Randy usa drogas constantemente e teve um interesse romântico no passado mal resolvido; Bob tem interesse pela mesma mulher e é tão autoconfiante que nunca admite um erro; Kevin é o inseguro e paranoico; e Hogan é o líder da brincadeira e o que mais se esforça para manter todos em contato.

Já as personagens femininas têm pouco espaço e caracterizações problemáticas: Anna (Isla Fisher, “Penetras Bons de Bico”) é a competitiva mulher de Hogan; a jornalista Rebecca (Annabelle Wallis, da série “Peaky Blinders”) é a personagem de fora daquele universo, que serve como recurso do roteiro para explicar ao público os detalhes da brincadeira; e Cheryl (Rashida Jones, da série “Parks and Recreation”) é apenas um interesse romântico do passado de Bob e Randy em uma subtrama desnecessária.

No saldo geral, “Te Peguei!” é muito bem intencionado como uma comédia de situações absurdas e como uma história sobre amigos (é possível sentir um afeto real entre os personagens). O valor da amizade e o rejuvenescimento que elas proporcionam são temas bem explorados pela narrativa e capazes de trazer sentimentos positivos ao público (nostalgia boa em relação ao que já passou ou o desejo de valorizar ainda mais os amigos atuais). É uma pena, portanto, que o desenvolvimento da trama, dos personagens e das sequências de ação não acompanhem completamente esses temas.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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