Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 04 de outubro de 2018

Ponto Cego (2018): a dura jornada pela liberdade

As temáticas que o filme aborda tinham tudo para torná-lo um drama intenso e pesado. Porém a leveza na mão do diretor e a habilidade para transitar pela comédia fazem deste uma das mais interessantes críticas sociais do ano no cinema.

Poucas coisas deixam um fã de obras cinematográficas mais feliz do que se deparar com uma boa obra, especialmente quando menos se espera. E isso pode acontecer de maneiras tão simples que tornam a experiência de ir ao cinema e ver um filme mais agradáveis. “Ponto Cego” é um perfeito exemplo desta situação. Pouco divulgado e sem gerar muita expectativa, o longa se mostra como um dos melhores lançamentos do ano.

A trama acompanha os últimos dias de liberdade de condicional do ex-presidiário Collin (Daveed Diggs, de “Extraordinário”). Proibido de sair da cidade de Oakland neste período, ele tenta levar sua vida sem se envolver em problemas que o coloquem na cadeia novamente. Mas a realidade na periferia se mostra como um desafio, seja pela cor da sua pele, seja pelo temperamento imprevisível de seu amigo Miles (Rafael Casal).

Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Carlos López Estrada consegue imprimir um estilo muito bem definido. Entre cortes ágeis e uma boa dosagem do humor, o filme passeia pelas diversas dificuldades que um negro enfrenta na periferia, sem torná-lo refém do contexto. A partir de seus olhos, nos deparamos com os mais variados tipos de violência, mas sem pesar demais no drama. Estrada parece estar ciente de que a vida de um negro não é composta apenas de tragédias, e os diversos alívios cômicos da produção deixam isso bem claro.

Uma parte considerável do sucesso obtido pelo diretor vem da forma como o roteiro aborda cada uma das temáticas. O texto não busca se agarrar em velhos clichês para desenvolver as críticas. Desde o começo, fica estabelecido sobre o que a obra fala, de fato. Porém, o desenvolvimento de cada situação é construído de forma que o público não consiga saber o que vem a seguir. Isso funciona de forma exemplar nos momentos de tensão – e diga-se que o filme dialoga com uma sublime sensação de terror psicológico em alguns momentos. Toda a ação gera uma consequência, o que torna praticamente impossível imaginar como a cena será finalizada.

E se o filme consegue prender o público nestas situações, Daveed Diggs é o principal responsável. O ator consegue transitar pelos momentos de forma dinâmica. Ele se diverte numa festa e pouco depois, quando percebe que a situação pode se complicar, sua expressão se transforma. O medo é uma constante, em especial pela inteligente opção de acompanhar os últimos dias da condicional. Sabemos que nada deu errado até este momento, mas não sabemos o que pode acontecer. Diggs traz um carisma necessário ao personagem, que passa de mocinho para vilão em apenas um corte. A montagem cria o incômodo de mostrar que, à luz da sociedade, ele pode estar em qualquer uma das posições. Por outro lado, o ator tenta nos convencer de que sempre esteve de apenas um desses lados.

E essa sensação incômoda é o que o roteiro utiliza para abordar o racismo, ao mesmo tempo em que outras pequenas discussões surgem. Sem perder tempo ou fazer pausas no filme, vemos críticas à violência policial, ao porte de armas e aos pequenos atos de machismo, muitas vezes ignorados. Em especial quando a figura paterna, que se vê na obrigação de prover a segurança, é discutida. A função do rap como a voz do negro na periferia também surge para dar força ao grito preso na garganta de quem se vê à margem da sociedade pela sua condição social ou pela cor da pele.

Mas como tudo é conduzido de forma leve, não há um sentimento ruim. O peso do filme está na forma como tudo é real. Estrada parece buscar momentos suaves para que o longa não se perca na narrativa dramática. Isso faz com que o drama se torne ainda mais real, uma vez que quando percebemos que há momentos bons, a possibilidade de perdê-los deixa tudo mais intenso.

Com um roteiro bem construído, que fecha todas as pontas soltas ao final, “Ponto Cego” consegue passear por temáticas delicadas sem ser pesado demais, ao mesmo tempo que não suaviza as delicadas situações que aborda. Como um filme de estreia de Carlos López Estrada e primeiro papel de destaque de Daveed Diggs, resta-nos apenas esperar pelo que mais eles têm a nos oferecer.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

Compartilhe