Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017): a crueza de nossos traumas

Ao não se fechar para a violência que conduz o protagonista, Lynne Ramsay no oferece um retrato de um mundo caótico construído a partir de traumas profundos. Ser violento aqui não é um fetiche, mas uma salvação.

Lynne Ramsay (“Precisamos Falar Sobre o Kevin”) é uma diretora com uma assinatura muito bem definida. Seus filmes abordam temas específicos e possuem ritmos que beiram o incômodo. Com isso, ela abre mão das regras mercadológicas para conseguir se expressar sem que haja uma voz maior que a sua na produção. O resultado são obras densas, mas que conseguem soar certeiras no público, desde que ele esteja disposto a isto. Em “Você Nunca Esteve Realmente Aqui”, Ramsay mostra novamente que não se curva ao formato comercial, soando como um dos breves respiros no cinema autoral, sem precisar ser pedante com isso.

A trama acompanha Joe (Joaquin Phoenix, de “Maria Madalena”), um ex-militar que trabalha como assassino de aluguel e sofre constantemente de estresse pós-traumático. Após receber o pedido de um governador para resgatar uma adolescente sequestrada, ele se vê no meio de uma conspiração, e se livrar de pessoas será apenas uma de suas preocupações.

A obra consegue se limitar essencialmente a dois nomes. O primeiro é o da própria diretora, com seus planos longos, que muitas vezes deixam a impressão de que a câmera está mais preocupada em mostrar a calmaria pós-ataque, do que o ato em si do protagonista. Isso serve ainda para revalidar o peso da violência, afinal o filme é sobre isso. Sobre as diversas faces de uma agressividade que se torna cada vez mais íntima de Joe. Não por acaso, entre uma sequência e outra, somos expostos a flashes da infância e de tentativas de autoasfixia, como um reforço de que mesmo em situações de calmaria, algo violento é preciso para que ele se sinta em paz – repare como mesmo num momento de divertimento com a mãe, a brincadeira surge a partir de uma referência a “Psicose”.

O outro nome que é central aqui é o de Joaquin Phoenix. O ator se mostra a cada novo trabalho num ápice mais evidente de sua carreira. Desta vez, ele compensa as poucas frases do personagem com expressões faciais e trejeitos que descrevem tão bem a persona que Joe já não consegue mais esconder. E neste momento é importante retomar a violência do filme, afinal é impossível não sentir a aura de perigo que emana do personagem. O que justifica a escolha da arma, afinal ele não é um torturador, mas um assassino. O martelo é uma opção que funciona pela simples pragmática entre eficiência e dor, algo que fala mais sobre Joe do que qualquer diálogo do longa.

E se Joaquin Phoenix e Lynne Ramsay são os dois nomes que despontam no primeiro plano, deve-se reconhecer o mérito garantido pela fotografia e pela montagem. A primeira, assinada por Thomas Townend (“Ataque ao Prédio”), que já havia trabalhado com Ramsay anteriormente, assegura que o enquadramento mostre, ao mesmo tempo, mais e menos que o necessário. Não há momento de gore explícito. As ações de Joe são enquadradas de modo que deixe algo fora do plano, ou apenas mostre a vítima após as consequências. Isso não significa que o filme não evidencie a brutalidade do ato, porém a opção é fazer isso sem recorrer ao óbvio. Ao mesmo tempo, os longos planos conseguem reforçar o tom melancólico que segue acompanhando de perto o protagonista.

Já a montagem de Joe Bini (“Docinho da América”), que também já trabalhou com a diretora anteriormente, consegue dar um ritmo muito peculiar ao filme. Sua lentidão é incômoda por não permitir que o público abandone uma cena de crime, ou que se tenha uma compreensão verdadeira do ambiente, sem saber, por exemplo, se há mais alguém no espaço mostrado. Bini construiu sua carreira principalmente com documentários, o que é facilmente notado aqui. A montagem tem um ritmo próprio, com eventuais retomadas ao passado. E mesmo que não evidencie nem deixe tudo claro, é fundamental para contar uma parte da história que é mostrada.

“Você Nunca Esteve Realmente Aqui” não é um filme fácil, algo que a diretora se esforçou para conquistar. Mas é uma obra consistente e com um diálogo aberto sobre como a violência acaba se tornando uma opção ao escapismo. E ela faz isso sem exaltar a hostilidade, afinal seu trabalho aqui é tão crítico quanto o apresentado em “Precisamos Falar Sobre o Kevin” – outro longa que expõe a violência como uma libertação. Talvez por isso o incômodo seja muito real. Ao tratar deste tema sem se esconder em maniqueísmos, Ramsay fala abertamente sobre algo que tentamos ignorar, mas que invariavelmente está sempre por aí.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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