Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

No Intenso Agora (2017): trazendo as coisas de volta à vida

Mais uma vez, João Moreira Salles cria um filme que só ele poderia realizar, e mesmo mantendo o tom intimista e memorial de outros filmes, ele também reflete sobre a nossa realidade política contemporânea.

O tom monocórdio e sereno da voz de João Moreira Salles irrompe a tela já nos primeiros fotogramas, explicando cenas de tempos passados e mostrando pessoas que não conhecemos. Cenas antigas de amigos que viajam pela China, ou de uma família com seus filhos e uma babá negra, que passeiam pelo centro da cidade, são postas em sequência, enquanto o autor tece as primeiras linhas de sua tese sobre memória e testemunho. Logo, ele nos revela que as cenas no Oriente foram gravadas por sua própria mãe, Elisa Moreira Salles, no auge dos anos 60. Descobrimos, assim, que “No Intenso Agora” é um filme biográfico, mais um na trajetória do realizador de Santiago (2007), dando prosseguimento à reflexão sobre o ponto de vista privilegiado com que pôde testemunhar alguns dos mais relevantes episódios políticos e culturais dos últimos anos.

Para quem não sabe, a família Moreira Salles é detentora de uma das maiores fortunas do país, advindas sobretudo de negócios financeiros e bancários, através do banco Itaú, do qual são donos. Tendo como destaque o patriarca Walther Moreira Salles, que fora, entre outras coisas, embaixador brasileiro em Washington no governo de Getúlio Vargas e Ministro da Fazenda no governo de João Goulart, a família também notabilizou-se como uma das maiores mecenas do país, investindo em cultura através do Instituto Moreiras Salles (que no Rio de Janeiro ocupa a antiga casa da família, no bairro da Gávea, e agora em São Paulo um moderno edifício em plena avenida Paulista); além do novo instituto Serrapilheira, de fomento à pesquisa científica; de revistas publicadas por seu selo, como a Zum e a piauí; e na produção cinematográfica, através da Videofilmes, tocada por João e Walter Salles, os dois cineastas da família.

Esse breve panorama familiar é importante para entender como e porque “No Intenso Agora” foi realizado, pois não se trata apenas de um filme de memórias, mas de um filme de lembranças de uma família que se localizava no centro político nacional nos anos pré-Ditadura Militar, portanto, detentora de um ponto de vista privilegiado dos acontecimentos. Ter entre eles um realizador que se disponha a revisitar o acervo – com muito lirismo, emotividade e reflexão sobre cada fotograma –, parece uma confluência bastante fortuita. João Moreira tem adquirido, ao longo de sua filmografia, a característica única de ser um membro da elite econômica nacional, produzindo reflexões documentais sobre seu país (diferente de seu irmão, que trabalha, sobretudo, com longas de ficção). Trabalhou com diversos temas, como a violência e o tráfico de drogas, em “Notícias de uma Guerra Particular” (1999), com Kátia Lund, mas é com “Santiago” e este último, que parece ter detido uma reflexão mais autocentrada, em que vê o mundo através dos olhos de sua família.

Falar em fotograma aqui, como o fiz duas vezes até agora, não é errado – como seria com relação a maioria dos filmes contemporâneos, totalmente digitais, em que o termo é utilizado num sentido mais metafórico. Isso porque o longa é composto integralmente por imagens de acervos, entre aqueles arquivados pelo IMS ou no acervo pessoal da família, além de outros cedidos por colegas. A essa coleção de imagens, somam-se trechos de filmes profissionais, experimentais ou amadores, sobretudo do contexto Europeu (de Paris e Praga) no crítico ano de 1968. O tratamento dado às filmagens impressiona, pois por vezes atinge uma qualidade de restauração que de fato traz os anos 60 de volta à vida, e assim temos, como poucas vezes, um vislumbre nítido, full HD, de cenas cotidianas daqueles anos em que o dia a dia era turbulento.

Nesse pout pourri selecionado por João Moreira – com as quais ele brinca, com idas e vindas e por vezes pausas, atentando-se a detalhes, como observador obsessivo que demonstra ser – apresentam-se preciosidades, certamente só encontradas por um time inteiro de dedicados pesquisadores. Usa-se as imagens tanto para dar face àqueles episódios – como no destaque à figura materna, mas também, em certa altura da narrativa, ao líder político Daniel Cohn-Bêndit –, bem como para explorar a dimensão política, jovem, afetiva, mas também do preconceito racial e da expansiva ramificação capitalista/burguesa, que aos poucos disciplinou a ideologia estudantil usando sua própria estética para vender novos produtos. Assim, alterna cenas do General De Gaulle dirigindo-se a uma população francesa em frenesi, com as recordações plácidas de sua mãe que aproveita as bonanças da vida em viagem à China, junto a amigos apresentados como um grupo de “banqueiros e industriais”, financiados por uma revista de moda internacional. Imagens sobre as quais são narradas as anotações da própria mulher, sobretudo os escritos em um artigo publicado em revistas francesa e brasileira sobre sua experiência (mostrando ainda mais a influência da família como formadores de opinião e tradutores da cultura na sociedade brasileira daquela época).

Aos poucos, essa caixa de retalhos ou filme tributo vai ganhando um tom mais político, à medida que o autor nos mostra fragmentos dos tempos em que a família morou na Europa, e conecta a recordação familiar à cenas históricas das manifestações de Maio, que paralisaram Paris e geraram ressonância em todo mundo Ocidental. A primeira parte da história, chamada de “Volta à fábrica”, termina, assim, com um poderoso trecho de um documentário francês inacabado, realizado por duas estudantes de cinema, que captura a discussão na entrada de uma fábrica, em que uma mulher recusa-se ao conformismo que parece ter abatido o movimento, enquanto dois homens tentam convencê-la de que trata-se de uma vitória para a classe trabalhadora. Essa polifonia de opiniões sobre o que estava acontecendo naquele período, também revela as hierarquias de gênero, poder e raça de um movimento liderado por jovens abastados do contexto universitário, que viveram o ápice e o declínio de sua geração em apenas algumas semanas.

Sobre isso realiza-se também uma reflexão sobre a própria natureza do material e do contexto político em que ele foi feito, como afirma o realizador em entrevistas. Fotografias e cenas são exibidas em formatos múltiplos, todas muito bem dispostas, como num catálogo de arte. A narração ou os áudios, por vezes tocam sobre a tela preta, dando dramaticidade aos momentos revelados. À vastidão de imagens profissionais e públicas das ruas de Paris sucedem-se cenas escondidas, capturas ilegais do fim da Primavera de Praga, no mesmo 1968, quando tropas da União Soviética tomaram o país. Outros rolos avulsos, sem identificação (e cujos detentores dos direitos sobre o material nunca foram localizados), também são utilizados no caminho amplo percorrido pela narrativa, mas que encerra a segunda parte, chamada “Saída da fábrica”, com uma das primeiras cenas da história do cinema, A Saída dos Operários da Fábrica Lumière, de 1896. O último mergulho possível na história do cinema: voltando aos primeiros fotogramas já filmados.

Bastante ambicioso em sua proposta, talvez abarcando dimensões demais de um mesmo contexto e deixando-o, por isso, aberto a múltiplas interpretações e críticas, o filme também não deixa de conter certa valentia, à medida que assume uma heterodoxa posição de misturar memórias íntimas a acontecimentos políticos mais amplos, mas que influenciaram a vida dessa família, justamente por opor-se à sua posição privilegiada de classe. Nessa medida, torna-se muito político, e felizmente assume suas referências marxistas, suscitando muitas questões de discussão pós-sessão (e mais pode ser visto no site do filme, que lançou uma série documental de conversas com intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso e Fernando Haddad, inspiradas pelo longa).

Ao fim, a obra é dedicada ao documentarista Eduardo Coutinho, de “Cabra Marcado Para Morrer” (1989), amigo do diretor e a quem ele atribui a característica de fazer um cinema que criava condições para fundir o passado ao presente, pelo exercício da rememoração. De alguma forma, é o que se faz aqui, mas diferente do cinema mínimo de Coutinho, valorizando o material que tem em mãos, traz à vida imagens esquecidas daquele passado através da sobreposição de recursos múltiplos e complexos na narrativa audiovisual . Assim, reforça-se as características múltiplas do realizador, que discute cinema ao mesmo tempo que política, assim como consegue ser emotivo, ao mesmo tempo que político.

Vinícius Volcof
@volcof

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