Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de julho de 2017

O Jardim das Aflições (2017): quem não está comigo, está contra mim

Contentando-se em ser mero apêndice do conteúdo ideológico que o filósofo já apresenta em seu popular canal do YouTube, o filme é um desperdício de oportunidade e dinheiro coletivo.

Ter vivido no Brasil nos últimos dois anos sem ter ouvido falar do filósofo Olavo de Carvalho é como dizer-se fã de séries, mas não conhecer Game of Thrones. Ressurgindo a partir de vídeos no YouTube em que comentava, entre outras coisas mas sobretudo, a situação política do país ainda à época do governo PT, o intelectual viralizou entre os praticantes dessa hoje tão disseminada arte de se comentar política pela internet.

Depois dos imbróglios que terminaram (terminaram?) com a deposição da presidenta Dilma Rousseff, pode-se dizer que, de certa forma, as ideias de Olavo – que ultrapassaram o ciberespaço e se materializaram em bem acabadas edições impressas de suas obras – foram das mais importantes influências para os que lideraram o movimento do impeachment. Assim, o sucesso dessa guinada ideológica tornou previsível um filme que tentasse desvendar sua figura.

“O Jardim das Aflições”, dirigido por Josias Teófilo e fotografado por Daniel Aragão, ambos nomes expoentes do cinema pernambucano que trabalharam, por exemplo, ao lado de Kleber Mendonça Filho (“Aquarius”), foi parcialmente financiado por alguns fãs do autor, que juntaram cerca de R$ 315 mil à produção. Filmado na cidade de Richmond, interior do estado sulista da Virginia, a obra, contudo, é quadrada em seu formato e oferece pouco até mesmo para os seguidores das ideias do filósofo.

O título é uma referência ao livro do próprio Olavo, lançado em 1995, e já começa com um monólogo do personagem central em referência ao jardim de Epícuro e aquele outro da Bíblia: “eu escolhi viver nos jardins” – arremata Olavo, que tem cerca de uma hora e meia para divagar sobre a vida, a história e tudo o mais, sem nenhum contra-argumento para confrontar suas polêmicas considerações.

Mas esse é apenas um dos problemas do filme. A entrevista principal, conduzida pelo jornalista Wagner Carelli, poderia perscrutar muito mais de seu entrevistado, mas não ousa trilhar esse caminho. Os problemas dessa opção narrativa são pelo menos dois: o primeiro é oferecer um mero repeteco doutrinário do que até mesmo os fãs de Olavo já devem estar cansados de saber por seus vídeos online; o segundo é que continuamos sem saber pormenores de sua confusa trajetória intelectual, a fim tanto de mergulhar mais profundamente em sua figura, quanto em desvendar as evidentes idiossincrasias de seus pensamentos, que no Brasil têm sido utilizados por movimentos de direito, muitas vezes excludentes e preconceituosos, em suas atividades políticas.

Astrólogo por formação, Olavo emergiu publicamente ainda nos anos 80, envolvendo-se com uma seita mística islâmica. Como repetiria ao longo da carreira, hoje ele renega o movimento e coloca-se no espectro diametralmente oposto a ela, sendo inclusive retratado pelo filme de Teófilo como um católico praticante e tendo feito vídeos em que vilipendia a expansão muçulmana no Ocidente. Já nos anos 90, Olavo assume a posição que nunca deixaria de ocupar: a de polemista. Uma pena que o filme-panfleto retrate tão brevemente esses momentos, com apenas duas imagens de arquivo em que o pensador discute suas obras provocativas, como “O Imbecil Coletivo” (1996), e prevê a ascensão da esquerda no Brasil recém redemocratizado.

A maior parte do documentário, contudo, quando não se dedica à mera propaganda de suas ideias, mostra um pouco (mas só um pouco) de sua interação familiar, contando com duas ou três incursões de sua esposa – que sempre lhe rasga elogios – e outras amenidades, como passagens claramente ensaiadas em que o protagonista vai caçar na floresta ou almoça com os familiares. Assim, fora as polêmicas que Olavo causa através do Atlântico, parece que o resto de sua vida é bastante desinteressante.

Um dos momentos mais espirituosos dessa narrativa insossa, que fracassa até mesmo em que capturar a sua icônica aura esfumaçada pelo espectro de seus infinitos cigarros, é quando Olavo nos apresenta sua biblioteca. Sem dúvida um devorador de livros, sua casa, embora simplória (conquanto adornada por uma bandeira americana na porta), tem um amplo cômodo para suas inúmeras obras filosóficas, históricas e políticas, de todos os espectros ideológicos. Com bastante humor, logo após fechar uma porta em que vemos um cartaz de Ronald Reagan com os dizeres “I want you to fight socialism” (“Eu quero que você combata o socialismo”), Olavo fala à câmera: “não existe nenhum comunista que leu tudo o que eu li. [Pois] se tivesse, não seria mais comunista”.

Certamente o pensador não é um ignorante, embora o mesmo não possa ser dito de muitos de seus seguidores, que têm carregado suas ideias dúbias para o terreno do neofascismo que parece ganhar espaço atualmente no país: “eu sirvo para atrair louco” – confessa Olavo, contando histórias do passado. Citando com tranquilidade algumas de suas referências teóricas e traçando linhas de pensamento logicamente coesas, nem sempre encontramos, porém, confiabilidade em seus argumentos: “Filósofos não precisam dar conta de suas ideias, senão com sua própria vida” – defende, mas repetidas vezes o vemos cair em generalizações normativas acerca da “sociedade” ou da “história social”, atrapalhando-se, sobretudo, num momento em que tenta explicar como a cultura é estruturante e os indivíduos inteligentes são aqueles que conseguem irromper-se a ela.

Quando ouvimos sua esposa contando sobre a influência do poeta carioca Bruno Tolentino (1940-2007) sobre o filósofo, ou quando o próprio Olavo diz que o “problema do sofrimento” motivou sua entrada na Filosofia, conseguimos, enfim,  vislumbrar traços do “rastreamento biográfico” das ideias que fazem dele o mais eminente filósofo da direita atual. Crítico ferrenho do que chama de “marxismo universitário”, o autor tenta discorrer sobre a “revolução gramsciana” (cultural, antes de política) que a esquerda brasileira, liderada pelo PT, teria tentado implementar no país, porém falta-lhe empiria para perceber as dinâmicas conflituosas que se passam dentro dos ambientes universitários e nas diversas camadas que compõem essa abstração chamada “sociedade”. Assim, parece que o autor pensa que os movimentos são pendulares sempre em uma só direção: até pouco tempo à esquerda, agora apenas à direita – mostrando, com isso, alguns simplismos de suas ideias.

Nascido para polêmicas, até mesmo seu filme tem causado rusgas por onde passa. Estreando no festival Cine Pernambuco desse ano, a obra provocou a saída de outros filmes do festival, que pontuaram o caráter conservador de sua seleção de filmes. Péssima decisão estratégica, pois esses filmes não só perderam visibilidade, como viram o fraco documentário de Teófilo levar os principais prêmios da competição.

Certamente atraente pela figura que traz à cena, o documentário, contudo, é uma decepção não apenas para aqueles que se opõem às ideias e posições políticas de seu protagonista, mas sobretudo aos fãs do bom cinema, que têm em mãos um filme sem nenhuma ousadia, pobre no básico da linguagem cinematográfica e pouco crítico por prestar-se a uma propaganda simplificada de uma figura que, por sua visibilidade e sucesso, nem ao menos precisaria disso.

Vinícius Volcof
@volcof

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