Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de abril de 2017

Joaquim (2017): Tiradentes para além do mito

História minimalista, com caprichada reconstrução histórica e ótimas atuações, faz com que a figura de uma das maiores lendas nacionais seja vista por um ângulo complexificado.

A construção de um mito se dá pela mistura de aspectos biográficos e de edições (ou adições) à biografia da figura martirizada, de modo a fazer dela uma amálgama do espírito nacional que se visa fabricar. Com Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), dentista mineiro da época colonial, talvez se tenha o exemplo mais notável da manufatura de um mito brasileiro, em que até hoje a realidade e a ficção sobre a sua figura ainda se confundem.

Joaquim”, produção luso-brasileira dirigida por Marcelo Gomes (“Cinemas, Aspirinas e Urubus”), tem como maior feito humanizar o herói nacional, desde os aspectos comezinhos de sua rotina penosa nos rincões da terra brasilis em pleno século XVIII, até sua paulatina aproximação com o movimento dos inconfidentes das Minas Gerais, do qual ele foi, a posteriori, conclamado líder.

Com uma direção ágil, primordialmente composta pela câmera na mão e coloração do fotógrafo Pierre de Kerchove (“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”), o realizador consegue contornar as limitações orçamentárias e recriar o espírito do tempo de uma época muito importante para se entender certas facetas do Brasil de hoje. No conteúdo, não em segundo plano, mas como estopim para a guinada revolucionária do protagonista, estão as bases do esquema explorador e corrupto da coroa portuguesa, em que oficiais da coroa praticavam suborno sobre os garimpeiros e os governantes locais não eram figuras nem um pouco confiáveis. Com isso, o roteiro escrito pelo próprio diretor foi inteligente ao puxar aspectos contextuais do biografado que ressoassem diretamente no Brasil atual. Assim, temas como a corrupção política e a passividade da população são debatidos pelos inconfidentes como se estivéssemos num filme contemporâneo. Representando em tela a forma e o conteúdo com que se erigiram as bases nacionais, conseguimos entender as origens de nossos persistentes problemas e lamentar nossa incapacidade histórica em superá-los.

Quando volta-se ao seu biografado, a trama também não peca em dinâmica ou conteúdo, oferecendo situações interessantes para delinear camadas muito mais profundas do que nosso senso comum histórico delimitou sobre Tiradentes. Trabalhando como alferes da Coroa, caçando ladrões de ouro pelas estradas de Minas e dando-lhes ordem de prisão em nome de “D. Maria, Rainha de Portugal”, entende-se, por meio do arco da história, que sua motivação inconfidente foi muito menos de caráter coletivista que individualista, depois de sucessivos engodos e traições que a coroa lhe impôs.

A atuação de Júlio Machado (“Trago Comigo”) é ideal em representar a crescente frustração do protagonista, que parece ter sonhos pequenos, assim como seus companheiros, e ainda assim intangíveis diante de tanto desequilíbrio e opressão. Sua motivação aparece como, sobretudo, amorosa, mostrando Tiradentes apaixonado por uma negra escravizada (a excelente atriz portuguesa Isabél Zuaa, de “Por Favor, Não Toques na Minha Afro”), ponto que pode não ser historicamente acurado, mas de fato muito pouco sobre a vida do biografado o é. Entende-se, porém, que a opção narrativa aqui foi preencher os vazios da biografia conhecida de Tiradentes não com o mais provável, mas com motivações simbólicas possíveis que levaram esse funcionário da coroa a tornar-se um revolucionário.

Num sistema desequilibrado de colonização extrativista que não via nem a região, nem seus habitantes, como dignos de maiores cuidados, e que tampouco tinha capacidade para gerir o território continental que descobrira no Atlântico, Tiradentes é representado como um típico filho da colonização, aquele que mistura étnica e espiritualmente a peculiar miscigenação entre negros, europeus e indígenas que aqui se deu. Não se torna, porém, líder de nenhum revolução, tampouco apresentam-se os episódios mais conhecidos de sua biografia, que são justamente aqueles que envolveram sua prisão, translado à capital, condenação e morte por esquartejamento em praça pública, no Rio de Janeiro. Antes disso, prefere-se (certamente devido ao orçamento, mas muito inteligentemente) explorar a biografia anterior ao mito, acompanhando uma série de acontecimentos muito peculiares que parecem ter mobilizado aquele homem ao ativismo político. Assim, substitui-se uma cena gloriosa de esquartejamento que poderia entrar para os anais do cinema nacional, com a paulatina fragmentação de uma personagem multifacetada, nunca antes representada dessa forma.

Uma reconstrução histórica impecável permite que seja dado um mergulho caudaloso pela história do Brasil através da história de um só homem, com o melhor que a chamada “Micro-história” pode oferecer. Sotaques portugueses misturam-se a dialetos tribais dos escravizados e cantos indígenas são cantados em duetos com canções africanas. Com isso, a figura do mártir da inconfidência emerge desse caldo condensado de culturas e visões de mundo, do mesmo modo como essa nossa terra se formou.

Contudo, antes de ser perfeito, o filme incorre em dois sérios problemas: o primeiro, uma barriga narrativa no meio da trama que produz bocejos – numa história que, por causa de seu recorte temporal, já não é das mais ágeis. O outro é uma edição ruim, que em pelo menos duas ocasiões ceifa a fluidez narrativa, cortando bruscamente as cenas sem aparente razão estilística.

Ainda assim, “Joaquim” era um daqueles filmes necessários em nossa filmografia, junto a outras histórias de homens e mulheres e, sobretudo, de acontecimentos que formaram o país, mas que ainda não foram retratados (ou, pelo menos, não da maneira certa). Um filme que até então nos faltava, mas que a partir de agora, felizmente, entrará na nossa prateleira nacional.

Vinícius Volcof
@volcof

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