Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 25 de outubro de 2016

O Contador (2016): Ben Affleck, números, balas e autismo

Em uma interpretação surpreendentemente sensível, Ben Affleck vive um herói de ação autista neste eficiente, porém falho, longa.

Sendo sucinto, “O Contador” é um filme de ação bem dirigido e divertido, com ótimos atores que navegam bem por um roteiro que precisava seriamente de algumas revisões. Dito isso, é uma obra que, a despeito de ter um guião previsível e, não raro, imbecil, vale a pena ser discutida por conta da condição de seu protagonista.

Comandado com competência por Gavin O’Connor (que dirigiu o correto “Força Policial” e o ótimo “Guerreiro“), o longa conta a história de um Contador (Ben Affleck) especializado em uma clientela de alto risco, como organizações criminosas, usando o disfarce de uma pequena firma de contabilidade, além de diversos pseudônimos, sendo Christian Wolff o seu mais recente.

Quando Christian é contratado para verificar um possível desfalque em uma grande empresa de robótica, ele e Dana (Anna Kendrick), uma jovem contadora da companhia, acabam no meio de uma perigosa conspiração, perseguidos por um grupo de mercenários liderado pelo eficiente Brax (Jon Bernthal). Enquanto isso, agentes da Receita Federal (J.K. Simmons e Cynthia Addai-Robinson) começam a chegar perto de descobrir quem é o Contador.

O roteiro usa de flashbacks para explicar as origens do Contador e como ele lida com seu autismo de alta funcionalidade. Embora essas cenas geralmente entrem no terreno do absurdo (vide o treinamento em artes marciais do Contador e de seu irmão quando crianças), há ali sim um elemento que destaca o longa de outras acerebradas fitas de ação, que é justamente o cuidado em retratar a condição do seu (anti-)herói.

Ben Affleck, que vem ganhando um reconhecimento maior da indústria cinematográfica nos últimos anos, pode parecer “forçado” no papel, mas a condição de seu personagem (possivelmente Síndrome de Asperger) pede justamente isso. Pessoas que sofrem com a condição do Contador literalmente se forçam a certas interações sociais ou a perceberem informações não-verbais que são absolutamente naturais à população geral. Encarar outras pessoas ou funcionar da maneira tida como “normal” se torna dificílimo, e isso o ator consegue expressar de maneira quase perfeita.

Até mesmo em combate, o Contador se mantém contido. Isso porque o filme – que jamais se propõe a apresentar um retrato realista do autismo ou de seu tratamento -, exagera e fantasia a condição de seu personagem tanto quanto os demais elementos da trama, mas o fato de Gavin O’Connor e Ben Affleck tratarem o assunto de maneira surpreendentemente sensível, inclusive nas repercussões familiares, acrescenta ao longa um plus interessante. Ademais, no restante dos quesitos básicos do gênero, o longa se sustenta muito bem.

Isso se deve também ao ótimo elenco reunido na produção, inclusive atores que deveriam ter maior reconhecimento. Anna Kendrick funciona meio como os olhos do público ao conhecer o Contador e interagir com ele. A atriz possui uma ótima química com Ben Affleck e traz uma inocência e uma energia deveras positiva à sua Dana, características necessárias como contraponto ao introvertido “Christian”.

Jon Bernthal usa sua persona “durona” para criar uma figura interessante com um mercenário cruel, mas “ético”, sendo uma pena que ele seja sabotado por um plot twist dolorosamente previsível e óbvio para qualquer um que tenha visto qualquer filme na vida. E, por mais que sejam em papéis secundários (quase pontas, aliás), é sempre bom ver atores veteranos e absurdamente talentosos como John Lithgow e Jean Smart na telona, aqui como os donos da empresa de robótica pivô da conspiração, com o mesmo se aplicando para Jeffrey Tambor, no papel de um dos mentores do Contador.

É doloroso, no entanto, ver J.K. Simmons em um papel que, mesmo com um tempo de tela relativamente alto, serve apenas para exposição ruim. Literalmente, seu plot não acrescenta nada ao filme além de expor informações que ou já tínhamos conhecimento ou que não contribuem em nada para o filme, tornando seu papel na história alternativamente inútil ou redundante.

Gavin O’Conner, em colaboração com o experiente diretor de fotografia Seamus McGarvey e o designer de produção Keith Cunningham criam não só cenas de ação visualmente atraentes (e compreensíveis), mas também apresentam cenários que refletem a condição do “Contador”, vide o seu trailer, sua “casa” ou seus ambientes de trabalho – por mais que a utilização de janelas de vidro como lousas já esteja batida desde “Uma Mente Brilhante”.

A despeito de suas falhas de roteiro e saídas de lógica duvidosa para alguns plots (especialmente em uma certa revelação nos últimos minutos de projeção), “O Contador” é um filme de ação competente no que se propõe e a discussão sobre a funcionalidade e integração social de pessoas autistas na sociedade dá ao longa um necessário diferencial.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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