Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A Colina Escarlate (2015): um romance gótico em movimento

Junto de "Labirinto do Fauno", temos aqui o trabalho mais doce de Guillermo Del Toro que, a despeito de um ritmo um tanto trôpego em seu segundo terço (e um inexplicável fetiche por transições em íris), é simultaneamente uma pequena pérola cinematográfica e uma carta de amor do cineasta a alguns de seus gêneros artísticos favoritos.

imageGuillermo Del Toro é, além de um cineasta ridiculamente talentoso, um tremendo de um fanboy, com gostos bastante peculiares e diversificados. Se em “Círculo de Fogo” o mexicano deu vazão à sua paixão por robôs gigantes saídos do Japão, este “A Colina Escarlate” serve como uma declaração de amor aos filmes da Hammer, aos longas de Mario Bava e à literatura gótica, inclusive situando essa história no auge deste gênero literário, no final do século XIX.

Sua heroína aqui, a escritora Edith Cushing (Mia Wasikowska) tem como modelo a criadora de “Frankenstein”, Mary Shelly, e seu sobrenome vem do lendário ator Peter Cushing, um dos ícones das obras de terror produzidas pela Hammer. Com tais referências, obviamente Edith não é uma mera rainha do grito, algo que fica bastante claro no decorrer da projeção.

Assombrada por fantasmas do passado e saída de uma tragédia familiar, Edith é arrebatada pelo galante e melancólico Thomas Sharpe (Tom Hiddleston), um nobre que a desposa e a leva para sua decadente mansão Allerdale Hall, na colina escarlate que dá nome à fita, na qual também mora a estranha irmã do Baronete, Lucille Sharpe (Jessica Chastein). Em seu novo lar, um estranho imóvel que “respira” e “sangra”, Edith terá de enfrentar os segredos da família Sharpe, que assumem várias e perigosas formas.

Não esperam um filme de terror contemporâneo típico. De maneira metalinguistica, Edith afirma que não se trata de uma história de fantasmas, mas de uma trama onde esses espíritos servem como uma metáfora para o passado. Do mesmo modo, a imagem da mariposa sendo atraída pelo fogo após o primeiro encontro da protagonista, ainda criança, com o sobrenatural, é um retrato perfeito de sua relação com os Sharpe.

Engraçado notar que a exploração de Allerdale Hall por Edith lembra, em alguns momentos, games como “Silent Hill” e o primeiro “Resident Evil” – certamente algo proposital por parte de Del Toro.

A química de Mia Wasikowska e Tom Hiddleston é um dos sustentáculos da produção. As interações entre os dois, durante o primeiro ato, parecem saídas de um romance de Jane Austen (autora também citada no filme, vale dizer), com o público compreendendo a atração que o aristocrata exerce nela. Cuidadoso em sua composição, Hiddleston cria um tipo sedutor e misterioso típico dos romances góticos, usando seu charme natural para desarmar sua plateia. Ao mesmo tempo, compreendemos o perigo latente nele e Lucille, algo presente até mesmo nos figurinos destes.

Jessica Chastein, por sua vez, vive sua Lucille como uma mulher que parece se esforçar para preservar sua meticulosa fachada, com seu verdadeiro eu borbulhando sob uma camada de aparente civilidade – representada visualmente pela argila vermelha que brota facilmente do chão da propriedade da família. Nos momentos que vemos Lucille “livre”, Chastein parece poder enfim respirar, trazendo uma energia única à tela.

Já Charlie Hunnam, tão carismático em “Círculo de Fogo” e na série “Sons of Anarchy”, acaba com o papel ingrato de bom moço genérico, parecido com o Jonathan Harker de Keanu Reeves no clássico “Drácula de Bram Stoker” (1992, Francis Ford Coppola), com seu Alan se mostrando deveras esquemático em meio a diversas figuras fascinantes.

A mansão de Allerdale Hall acaba sendo um personagem em si. A despeito do seu aspecto arruinado, ela é de uma beleza assustadora, em todos os sentidos, invadida pelo tempo e pela natureza, ela serve como um espelho para os Sharpe. Grande motivo que torna o longa um candidato óbvio aos prêmios de direção de arte, o lugar realmente parece vivo. Cada cômodo parece único e carregado de lembranças, o que casa perfeitamente com a proposta da história.

Não se trata de uma mera casa assombrada, mas o local de morada de dores e amores terríveis, concebido e explorado de maneira genial por Del Toro e seu diretor de fotografia, Dan Laustsen. Cada frame do longa preenchido com um esmero visual inacreditável, dotando a tela IMAX de uma beleza por vezes sinistra. Ressalte-se ainda o ótimo design das criaturas fantasmagóricas que surgem no decorrer da produção, bem como a movimentação assustadora e elegante criada pelo mímico Doug Jones para elas.

Completando a atmosfera triste e solene da produção, temos a marcante trilha de Fernando Velásquez, que dá alma a Allerdale Hall com sua música. A produção derrapa um pouco em sua montagem, que se torna um tanto arrastada no seu segundo ato, sendo este o único deslize em meio a um espetáculo tecnicamente perfeito.

Logo de cara, Edith nos conta que seus fantasmas são reais. A grande tragédia é que as dores que os vivos carregam assustam mais do qualquer fantasma.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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