Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Voo (2012): o retorno decente de Zemeckis ao universo live-action

Com Denzel Washington inspirado, cineasta conta história sobre ética, profissionalismo e vícios em filme de início espetacular.

O VooPara os que eram jovens no final dos anos 80 e início dos 90, ele será sempre o diretor da franquia “De Volta para o Futuro”. Para os mais emotivos e ligados em premiações de cinema, ele é o realizador de “Forrest Gump – O Contador de Histórias”. Para os mais novinhos, ele é apenas o cineasta de animações medianas como “Expresso Polar” e “Os Fantasmas de Scrooge”, feitas por meio de performance de captura. Mas Robert Zemeckis, depois de 12 anos, está de volta ao universo live-action que o consagrou mundo afora. Em “O Voo”, a busca pela própria ética, o profissionalismo e a luta contra os vícios podem ser a temática, mas nada supera a sensacional sequência de acidente aéreo que faz com que toda essa problemática história tenha início.

Como piloto e personagem principal desta trama temos Whip Whitaker (Denzel Washington), um profissional experiente no ramo. Depois de uma noitada regada a cerveja, cocaína e sexo, ele precisa guiar um avião de Orlando até Atlanta. A manhã chuvosa assusta, principalmente depois da turbulenta decolagem, mas a situação piora quando a aeronave sofre uma pane irreversível. A queda é inevitável, mas manobras inéditas por parte de Whitaker salvam 96 das 102 vidas a bordo. O gesto heróico, no entanto, não evita que sejam feitas contra ele acusações de embriaguez e uso de drogas, logo após um exame de sangue revelador. A partir de então, ele precisa lidar com o assédio da imprensa, que o exalta, com as acusações dos investigadores da tragédia e com os males da vida confusa que vem levando há alguns anos.

Estamos diante de um herói ou de um vilão? Esse é o grande questionamento do filme acerca de seu protagonista. O roteiro de John Gatins, indicado ao Oscar pelo trabalho, no entanto, prefere não julgá-lo, pelo menos até a metade do terceiro e último ato do longa. Exibe-o acertadamente como um homem de escolhas questionáveis, extremamente competente no que faz, mas que prefere beber a visitar o único filho, que o rejeita, assim como sua ex-mulher. O ego inflado também jamais permite assumir seus próprios erros. Um abrandamento de seu caráter acontece após o acidente, mas nada que uma crise de bebedeira possa resolver em contrário.

Mesmo assim, Whip nunca soa como coitado ou monstro. É apenas um homem mais problemático do que o usual. A atuação enérgica de Denzel Washington, que lhe rendeu mais uma indicação ao Oscar, também faz do personagem carismático e crível em todas as suas virtudes e em todos os seus vários defeitos.  As nuances do ator para os estados de embriaguez (quase constante) ou não de Whip devem ser exaltadas, passando ao largo de um exagero de enrolar línguas e pernas. Impressiona ainda como Washington convence como piloto, com um linguajar que sai naturalmente de suas falas descontraídas.

Kelly Reilly também capta facilmente a atenção do público, como Nicole, a moça autodestrutiva que deveria funcionar como a versão feminina do piloto. Apresentando simultaneamente os dois personagens (enquanto um guia, com alto teor de álcool no sangue, um avião prestes a cair, a outra tem uma overdose de heroína), o roteiro, porém, falha na construção de um romance disfuncional e de uma analogia da conturbada situação mental e física dos dois. Não há tempo de tela suficiente para Reilly cumprir seus objetivos.

Mas ainda há espaço para ela repartir com Washington e James Badge Dale, como um paciente com câncer terminal, uma das melhores cenas do filme. Em um encontro casual nas escadas do hospital, os três repartem as situações degradantes que o levaram até ali, compartilhando visões nem tão otimistas assim da vida. O enredo, por sinal, agrada ao arriscar-se no politicamente incorreto, personificado mais explicitamente por um irrepreensível John Goodman (que surge ao som de “Sympathy for the Devil”), funcionando como alívio cômico que dá ritmo à narrativa em poucos, mas eficientes momentos. Mas John Gatins vacila ao fugir dos entraves éticos e profissionais que a história apresenta, fazendo de Whip uma mera marionete de advogados e representantes sindicais sedentos por defender seu cliente a qualquer custo.

Se o roteiro apresenta suas falhas, a direção de Robert Zemeckis não é diferente. O segundo e o terceiro atos, de demasiados diálogos, tornam-se cansativos, nem mesmo compensados por rápidos zooms que buscam embarcar nas loucuras realizadas por seus personagens ou pela inserção de adrenalina adicionada com o surgimento de Goodman em tela. Mesmo porque é difícil, senão impossível, manter o nível do que foi apresentado na primeira meia hora. Em uma sequência impressionante, que pode ser classificada como uma das melhores cenas de ação dos últimos anos, Zemeckis demonstra-se em forma ao levar ao chão um avião de passageiros.

Como uma verossimilhança que assusta de tão convincente, graças aos detalhes da direção de arte, dos efeitos especiais, ao ritmo incessante da edição e do timing perfeito dos atores, embarcamos em uma viagem trágica, mas, acima de tudo, divertida, em que até o exagero convence. Ao final dela, tem início um aparente outro filme com méritos e defeitos, que são exaltados pela conclusão moralista encontrada por Gatins, dando a “O Voo” um resultado pouco homogêneo que pode ser classificado apenas como um retorno decente de Robert Zemeckis ao live-action.

Darlano Didimo
@rapadura

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