Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 02 de setembro de 2012

Intocáveis (2011): belo filme espelha as crises sociais europeias

Baseado em uma história real, o maior fenômeno da história recente do cinema francês comove, diverte e nos faz pensar na dependência que temos do outro (e que o outro tem de nós) em vários níveis.

Em 2005, os habitantes dos subúrbios parisienses demonstraram sua insatisfação para com o tratamento que lhes tem sido dispensado por meio de revoltas violentas. A desigualdade que motivou o levante perdura até hoje, agravada pela crise econômica que vem se arrastando na União Europeia há algum tempo.

Essa população, em grande parte formada por imigrantes africanos, vive longe da iluminação cultural pela qual a Cidade-Luz é famosa e quase nunca ganhou uma voz no cenário internacional, só saindo da obscuridade que é peculiar às classes mais baixas quando ocorreram levantes desse porte.

A introdução acima explica muito bem o porquê deste magnífico “Intocáveis” realizar certas alterações na transposição para o cinema da tocante história real de Philippe Pozzo di Borgo (narrada no livro autobiográfico “O Segundo Suspiro”). Herdeiro de duas famílias tradicionais francesas, ele ficou tetraplégico após um acidente de parapente, justamente na época em que sua esposa padecia de uma enfermidade que a levaria ao óbito.

Interpretado com segurança ímpar por François Cluzet, Philippe é um homem que, superficialmente, parece ter aceitado sua condição, apesar do sofrimento e privações que esta importa. Outrora criado com a crença de que, por conta de sua fortuna, “podia mijar em qualquer um”, ele agora se vê em uma posição de dependência absoluta, não suscitando mais respeito ou inveja como outrora, mas pena. Esta era sua situação até conhecer aquele que se tornaria seu cuidador e amigo, sendo aqui que realidade (livro) e cinema se separam.

Os diretores e roteiristas do longa, Olivier Nakache e Eric Toledano, enxergando o cenário que se apresentava nos subúrbios franceses, modificaram o co-protagonista da produção para que este passasse a ecoar as vozes das multidões que gritavam dos subúrbios franceses. Enquanto fora o argelino Abdel que cuidou de Philippe na vida real, na versão cinematográfica da história somos apresentados ao senegalês Driss, vivido pelo comediante Omar Sy.

E é pelos olhos de Driss que conhecemos Philippe. Após um prólogo que nos mostra um pouco do que será a dinâmica entre os dois personagens, voltamos algum tempo no passado e vemos o dia em que eles se conheceram. Buscando apenas uma assinatura confirmando seu comparecimento para uma entrevista de emprego, visando obter auxílio-desemprego (criticado em um aceno para a direita francesa), o jeito desbocado de Driss para com o aristocrata deficiente, o tratando sem um pingo da piedade artificial que se transformou em sua realidade, acaba por lhe conceder um emprego.

Nakache e Toledano apostam no choque cultural entre esses dois moradores de lados tão diferentes de uma mesma cidade, tratando-o com uma deliciosa leveza cômica. Os movimentos das mãos e pés de Driss são sempre valorizados pela câmera sempre certeira dos cineastas, servindo como contraponto do seu estático empregador. Já a realidade luxuosa e de cores vivas de Philippe contrasta com os compactos e monocromáticos conjuntos habitacionais onde vive a família de Driss.

Esses, claro, são apenas reflexos visuais das diferenças entre os protagonistas. O grande trunfo do filme é mostrar como os backgrounds culturais dos dois acabam por se completar. Em dado momento, Driss diz que é “os braços e pernas” de Philippe, aquilo que o impulsiona, sendo isso uma verdade clara no longa, com as ações que tiram o bilionário de uma situação estagnada sendo quase todas iniciadas por seu cuidador. Em contrapartida, este é presenteado com conhecimentos de arte e a noção de responsabilidade.

Nisso, a escolha do carismático e sorridente Omar Sy para o papel foi de uma felicidade inegável. Dotado de uma energia contagiante, seu Driss é o retrato da vivacidade, mesmo em seus momentos mais introspectivos ele se mostra como uma força enérgica prestes a irromper em movimento.

Por mais que a trama envolvendo Philippe e Driss seja batida (homem de outra cultura conhece aristocrata e forja com ele amizade que muda a vida de ambos), a força dos dois personagens cativa o público, que responde com real interesse pela narrativa que se segue. Não atrapalha também o talento e o carisma dos atores que ajudam a contar essa história e a óbvia competência e sensibilidade dos realizadores. O roteiro encontra alguns pequenos solavancos, especialmente simbolizados na filha adotiva de Philippe e no irmão problemático de Driss, cujos conflitos são desenvolvidos de maneira deveras artificiais, mas que não comprometem o resultado final.

Interessante notar que, apesar de os protagonistas influenciarem bastante um ao outro, eles jamais esquecem de suas identidades, percebendo que necessitam daquilo que o outro tem a oferecer para avançar. Nesse aprendizado está a verdadeira genialidade das alterações que Nakache e Toledano fizeram na história, em uma alegoria da interdependência dessas duas classes sociais tão diferentes em época de crise na Europa. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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