Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 30 de novembro de 2019

Personal Shopper (2016): identidades inspiradas

Suspense pensado e executado por Olivier Assayas desconstrói convenções esperadas pelos espectadores e trabalha as múltiplas dimensões da identidade de seu filme e da atuação de Kristen Stewart.

A sinopse de “Personal Shopper” pode enganar as primeiras impressões precoces de quem aguarda uma narrativa tradicional. O ponto de partida da história está na chegada de Maureen (Kristen Stewart) em sua antiga casa para tentar estabelecer uma comunicação com Lewis, seu falecido irmão. Aparentemente, uma premissa assim poderia sugerir um terror convencional interessado em explorar explicitamente o sobrenatural. Todavia, o diretor e roteirista Olivier Assayas (“Acima das Nuvens“) desconstrói essa aparência e mistura identidades estéticas e dramáticas, criando uma complexa protagonista e diversos filmes dentro de um só.

Dramaturgicamente, existem três dimensões do roteiro que se entrelaçam para acompanhar a trajetória de Maureen. Ela é uma médium que ainda possui laços com o irmão, não apenas pela questão espiritual, mas também por serem gêmeos e terem o mesmo problema cardíaco. Enquanto isso, trabalha em Paris como personal shopper para uma famosa modelo chamada Kyra (Nora von Waldstätten), buscando roupas e adereços nas lojas e estilistas mais consagradas da Europa para desfiles ou outros tipos de divulgação. Além disso, o conflito narrativo ganha maior potência quando a mulher passa a receber misteriosas mensagens no celular de alguém que não se identifica e pergunta sobre assuntos íntimos e pessoais.

Jamais se restringindo a uma única imagem ou estilo, Olivier Assayas começa construindo um suspense psicológico em torno de tradições do gênero e, posteriormente, de subversões das convenções: há uma casa assombrada, aparições de espíritos, assassinato e outros fatos que ameaçam a personagem. Ao mesmo tempo, esses elementos são traduzidos visualmente fora da lógica comercial de jump scares, de ritmo acelerado e de movimentos dinâmicos da câmera. A primeira porção do filme, portanto, concebe uma atmosfera de mais perguntas do que respostas, de insinuação de perigos nas sombras e no fundo do quadro, e de incertezas que abalam a segurança e o psicológico de Maureen de maneira realista.

Quando o foco se direciona para o trabalho no mundo da moda, a identidade cinematográfica se altera e modifica também a concepção sobre a própria protagonista. O cineasta enquadra a rotina diária de buscar roupas e acessórios, devolver o que já havia sido usado e suportar o gênio forte e arrogante de Kyra colocando o espectador dentro daqueles momentos através de muitas sequências de deslocamentos pelas ruas e no interior de veículos. Porém, acima de tudo, esse drama de situação mostra como essa vida profissional não desperta grande satisfação, cria uma submissão em relação à chefe e, gradualmente, leva a protagonista a se arriscar experimentando as vestimentas que não poderia usar – algo que, para ela, significava romper com uma existência indesejada.

A narrativa ainda se transforma em outro tom dramático quando Maureen troca mensagens com um número desconhecido. Inicialmente, o diretor torna uma conversa confrontadora, por conta da estranheza da situação e das tentativas de descobrir quem era o indivíduo oculto, em um mistério paranoico sobre privacidade e exposição: o conteúdo avança para uma discussão sobre desejo, medo e proibições com conotação sensual e as sequências são montadas em uma velocidade crescente para imprimir tensão. É um segmento que novamente aborda a questão da identidade por trazer a indefinição de quem seria o misterioso interlocutor e por estimular Maureen a repensar quem era – nada mais simbólica do que a sequência em que admite que desejava ser outra pessoa e tem um prazer sexual após as mensagens e vestir as roupas de Kyra.

As variações identitárias estão tão entranhadas na obra que esse aspecto igualmente recobre a jornada dramática da protagonista. À medida que o texto se desenvolve, fica cada vez mais evidente como Maureen possui questões mal resolvidas em relação a si mesmo e ao irmão. Ela demonstra insatisfação pelo trabalho que tem, mas ao mesmo tempo não consegue abandoná-lo para se encontrar com o namorado em outro continente; mantém um vínculo nada sadio com Lewis, sendo incapaz de seguir sua vida por estar preocupada em se comunicar com ele (o que a faz cogitar estar ouvindo manifestações espirituais do familiar a cada mínimo ruído ao seu redor); revela seus segredos a um desconhecido após pouco tempo de conversa, abrindo-se para alguém que supostamente a colocava em risco; e começa a experimentar novas possibilidades quando usa aqueles trajes “proibidos”, sentindo-se uma nova pessoa. Todo o arco envolve a reconfiguração de sua identidade – ainda que não plenamente – encenada por Kristen Stewart com uma sutileza que demonstra ser uma atriz mais talentosa do que o estereótipo de “Crepúsculo” havia se fixado nela. Ela contém a expressão dos sentimentos em razão do seu problema cardíaco e, gradualmente, os expõe através da angústia quanto à sensação de perigo e ao descontentamento de uma vida incompleta.

Enquanto os conflitos em torno da personagem alimentam as dúvidas sobre a presença ou não do paranormal, vai ganhando espaço aos poucos a problemática de sua individualidade. Novamente a precisão artística de Olivier Assayas é a responsável por interligar o real ao antinatural e criar um desfecho que atende as duas direções narrativas. O último confronto de Maureen com os espectros que a cercam se torna, na realidade, um confronto interno com o que ela precisa repensar, transformar, abandonar ou ressignificar. É uma sequência final hábil para resumir como o filme “Personal Shopper”, o cineasta e a atriz principal brincam com diferentes identidades e demonstram o dinamismo da arte e do ser humano.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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