Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 27 de agosto de 2019

Bacurau (2019): os Brasis resistem

Um retrato visceral de uma parte do Brasil pouco conhecida - e, quiçá, esquecida - com pinceladas de realismo mágico, de western, de sci-fi e de ufanismo que definitivamente funcionam.

O audiovisual brasileiro vive, atualmente, um momento muito promissor no sentido do resgate de marcas regionais que tanto fazem parte de sua história de criação. Algo análogo ao que ocorreu na primeira fase do Cinema Novo – em que as mazelas sociais pareciam, pela primeira vez, efetivamente ganhar o devido enfoque pelos olhos certeiros de Glauber Rocha (“Deus e o Diabo na Terra do Sol“) – tem acontecido com títulos que têm caído nas graças do público recentemente e retratam o nordeste do País, como “Cine Holliúdy” e  “O Auto da Compadecida”. Vem se construindo, dessa forma, um cinema nacional pautado nos vários “Brasis” que existem em nosso território, e em todas as peculiaridades e variações comportamentais e fonéticas que moldam o ser brasileiro. Assim, Kleber Mendonça Filho (“Aquarius”) e Juliano Dornelles, ascendem como diretores e roteiristas se propondo ao engajamento nessa corrente regional com seu novo longa: “Bacurau“.

O filme conta a história de uma cidadezinha no interior do nordeste brasileiro que parece esquecida no tempo. Bacurau, assim nomeada por causa de um pássaro local, retoma um Brasil marginalizado, onde o Estado pouco chega, em que perdura uma estrutura essencialmente coronelista de troca de favores, e o prefeito só aparece de quatro em quatro anos. Entre falta de sinal de internet e de telefone, entrega de remédios e alimentos vencidos aos cidadãos, assassinatos de moradores sem solução e até o desaparecimento da cidade no mapa, Kleber e Juliano vão situando o espectador em um thriller distópico, sob um primeiro olhar, mas que escancara com duro realismo as entranhas – pouco conhecidas – de um país heterogêneo em sua essência.

Parte do mérito do filme diz respeito à forte carga emocional que ele carrega, principalmente àqueles que cresceram nesses interiores cuja cidade de Bacurau se assemelha, o que escancara o caráter antropofágico e bastante pessoal do fazer artístico de Kleber Mendonça Filho, uma vez que ele traz para a tela parte de sua trajetória. Tudo isso é ressaltado nos detalhes, na figura do repentista de improviso, por exemplo, tão comum à cultura local, na “buchada” oferecida por Sônia Braga em uma das sequências, na calorosidade bruta característica da personalidade do nordestino, mas essencialmente na paisagem do Sertão, que personifica-se no longa. Pedro Sotero, incumbido da fotografia da obra, triunfa no que se refere a incutir no espectador uma verdadeira experiência imersiva pela caatinga sertaneja e pelo sentimento “severino” (à João Cabral de Mello Neto). Com muitas sequências de planos abertos e closeups, ele exalta a coexistência das cactáceas e das matas fechadas pluviais, da seca e das chuvas torrenciais, da morte e da vida, tão contrastantes mas tão complementares no cotidiano do nordeste. O longa é, inclusive, muito autoconsciente dessa denúncia que faz, o que decorre em sacadas inteligentes de roteiro, como uma sequência em que perguntam “Quem nasce em Bacurau é o que?” e a resposta vem cortante, mas em um tom aveludado de inocência: “é gente”.

Cabe ainda à obra, decorrente de uma excelente construção de roteiro, um tom misterioso que se mantém durante todo o filme, em que tudo é meio dúbio e o clima de tensão é crescente e constante, muito parecido com o que foi feito por Lars von Trier no seu fantástico “Dogville” e com o que tem sido consolidado nos títulos de Jordan Peele (“Nós“). São pinceladas também sequências com um ar meio scifi, com direito à computação gráfica e plottwists interessantíssimos, que ajudam a compor essa grande bricolagem que é o filme, muitas vezes sem se decidir a qual gênero pertence, mas com a convicção de executar com maestria tudo o que se propõe, ligando todos os pontos.

Além do mais, sempre politizado, Mendonça Filho aposta numa crítica ferrenha às divisões do Brasil, tão frequentes nas últimas eleições, exaltando a força do coletivo. Assim, subverte todas as questões de rixas Norte e Sul que têm eclodido nos últimos anos e ressalta que o caminho para o crescimento do País, para o desvencilhamento de quaisquer amarras, se dá na junção dessas nossas forças internas: dessas pluralidades. Mesmo com vilões excessivamente caricatos, essa narrativa funciona, posto que bebe muito do movimento ufanista da geração de 20 do modernismo, e manda um recado muito claro e necessário para as intervenções estrangeiras no nosso território. O arquétipo do colonizador imaculado (muitas vezes idealizado cotidianamente) é completamente destruído, e toda a concepção de civilidade incutida nesse ideal colonialista também é deixada de lado para que se possa pravalecer os valores locais.

Em suma, “Bacurau” é histórico, é preciso, é mordaz, é um delírio fantástico mas é, acima disso tudo, real. E a experiência de assistir a esse longa traz consigo um orgulho muito grande de ser Brasil, não só pela percepção da qualidade do que tem sido produzido em termos de audiovisual em nossa terra, mas por todo o esqueleto de exaltação e de intertextualidade nacional montado durante as pouco mais de duas horas da obra. Se Tom Zé perguntou, outrora: “Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”, “Bacurau” responde, aos berros, que do medo se faz resistência. E com resistência se faz o que quiser.

Lígia Amora
@rapadura

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