Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Temporada (2018): o encanto do prosaico

A partir de um olhar afetuoso sobre pessoas comuns e "invisíveis", "Temporada" comprova como é possível extrair beleza e transformações pessoais do cotidiano.

Encontrar a beleza no trivial, desfrutar da convivência de pessoas comuns e valorizar cada momento corriqueiro da vida. São essas as ideias essenciais captadas pelo olhar atencioso do diretor André Novais Oliveira (“Ela Volta na Quinta“) em “Temporada“. O que pode, aparentemente, soar como uma rotina banal, desinteressante e monótona, carrega dentro de si oportunidades de recomeço e de crescimento emocional.

A narrativa é protagonizada por Juliana (Grace Passô, de “Praça Paris“), que deixou Itaúna, no interior de Minas Gerais, e se mudou para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ao começar um novo trabalho como funcionária de combate a endemias, ela se depara com situações e pessoas singulares, capazes de mudar sua vida. O roteiro não procura estabelecer uma trama propriamente, que tenha arcos e conflitos dramáticos muito perceptíveis. O interesse primordial é acompanhar acontecimentos, indivíduos e sentimentos extremamente reais e próximos da nossa realidade, praticamente como se estivesse exibindo a passagem da vida comum diante dos nossos olhos.

A sensação de realismo é construída através do registro do cotidiano dos funcionários de combate às endemias da região, introduzindo Juliana como a novata no emprego. A dinâmica entre todos eles é muito verossímil e cria rapidamente laços de identificação com o público: os momentos em que explicam o trabalho a Juliana, inclusive alertando sobre os riscos de encontrar animais perigosos nas visitas às casas dos moradores; além de se divertirem em uma festa de aniversário ou simplesmente conversarem sobre a vida. Há uma afeição muito rápida pelos coadjuvantes porque são carismáticos e engraçados, como o Russão (o estreante Russo Apr) ao convidar Juliana para jogar PlayStation, além de serem críveis por usar uma linguagem informal de palavrões, gírias e regionalismos.

Visualmente, a ilusão de realidade é estabelecida com os planos fixos trazendo os personagens centralizados, planos longos mostrando “tempos mortos” (as vistorias nas casas, as caminhadas pelas ruas da cidade, as atividades da protagonista em sua própria residência…) ou a movimentação extremamente fluida e discreta da câmera. Essas escolhas emulam como seria a imagem captada pelo olho humano, sem cortes ou outros truques da direção ou da montagem – é o recurso visual para fazer o público mergulhar no dia a dia dos personagens, se sentindo parte dele. Além disso, existem planos expressivos, construídos para dar importância ao sentido transmitido e não às convenções da linguagem. Por exemplo, nos diálogos a câmera se fixa em quem está dizendo algo importante dramaticamente e não se alterna entre os interlocutores; e em outra sequência, a câmera registra as paisagens da cidade quando estão discutindo as transformações pelas quais ela passou e não os personagens em questão conversando.

A força da realidade também é apresentada pela trajetória de Juliana. Seu cotidiano após à chegada em Contagem é mostrado detalhadamente: as primeiras inspeções nas casas, as conversas com a prima que encontrou uma casa para alugar, e os momentos sozinhos quando usa o celular, dorme ou faz afazeres domésticos. Tais sequências evidenciam os desafios na mudança de cidade, como as dificuldades financeiras; conflitos em seu passado e em sua intimidade, dentre eles o desgaste do casamento, uma tragédia pessoal e a estranha relação com o pai; e sua personalidade retraída e tímida. Esses aspectos são indicados pelas poucas palavras que diz e pelas pausas, silêncios e hesitações quando precisa falar de algo que a incomoda.

Entretanto, o filme não menospreza os demais personagens. Os coadjuvantes também têm seu espaço e enfrentam dilemas e problemas próprios em suas vidas. A chefe Lúcia (Rejane Faria, da série “Mostra tua Cara“) sofreu racismo durante o primeiro casamento; Russão precisa encontrar outros meios de sustento depois que descobre que será pai; e Hélio (o estreante Hélio Ricardo) ficou preso há muito tempo em um emprego que paga mal por falta de outras oportunidades. Ainda assim, são pessoas que tentam levar a vida com bom humor e superar as tristezas através da união entre eles: Lúcia demonstra preocupação sincera com a equipe de funcionários, Russão manifesta uma confiança e otimismo invejáveis sendo sempre brincalhão e extrovertido, e Hélio expressa companheirismo em relação a todos os colegas.

A convivência que Juliana passa ter com as novas pessoas ao seu redor transforma sua personalidade. A trilha sonora e a própria atuação de Grace Passô indicam a transformação da personagem: as notas melancólicas da trilha são substituídas por notas de ritmo mais dinâmico e alegre; e a performance da atriz se torna mais expressiva e extrovertida, deixando, sutilmente, a timidez de lado. “Temporada” é, em suma, um filme afetuoso sobre como o cotidiano trivial e as pessoas comuns, relegados a segundo plano, têm capacidade de transformar vidas – o último frame é o símbolo de como a vida avança, atravessa alguns percalços, mas pode encontrar um novo rumo em que se reestrutura em direção à felicidade.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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