Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 22 de julho de 2018

Ilha dos Cachorros (2018): as muitas dimensões de um mundo cão

Longa é profundo sem perder de vista nenhuma parte de seu público, e entrega constantemente um espetáculo visual.

O antropomorfismo é uma ferramenta narrativa na qual objetos inanimados e animais são feitos de forma a se parecerem mais com pessoas, para diversos propósitos dentro de uma história. Através deste artifício, a arte é capaz de ressaltar características humanas ao colocá-las fora de seu ambiente natural – uma frase, reação ou expressão típica de uma pessoa, destaca-se com muito mais anomalia saindo de um bicho, por exemplo. É assim que “Ilha dos Cachorros“, novo filme do diretor Wes Anderson, é uma obra-prima ao mesmo tempo acessível e profunda, enquanto trata do que é ser humano no século XXI através de diversas dimensões.

No filme, todos os cães de Megasaki estão infectados por uma gripe canina que parece prestes a afetar os humanos. Sob o pretexto de proteger a população, o autoritário prefeito Kobayashi isola todos os cachorros em uma ilha na qual a cidade também despeja seu lixo. Enquanto os animais se encaminham para um miserável fim, a chegada do menino Atari Kobayashi irá mudar toda a situação, enquanto busca pelo seu cachorro desaparecido.

Esta história se dá através da técnica de stop-motion, em uma das exibições mais primorosas do modelo no cinema. Aqui, Anderson parece ainda mais inspirado do que em “O Fantástico Senhor Raposo“, conduzindo sua equipe em apresentar enquadramentos belos e inspirados; em diversos momentos é mesmo difícil prestar atenção nos diálogos e não se distrair com as composições que aparecem em cena. Aliado ao esforço visual, a escolha do elenco de dublagem também é um sucesso, contando com nomes como Bill Murray (“Mogli: O Menino Lobo”), Scarlett Johansson (“Vingadores: Guerra Infinita”) e Frances McDormand (“Três Anúncios de um Crime”). Neste setor, é devido um destaque à Edward Norton (“Beleza Oculta”), que empresta seu ritmo acelerado e de fluxo de consciência ao cachorro Rex em momentos inspirados do longa.

O roteiro, escrito por Anderson, usa toda esta estrutura para contar uma história multidimensional e rica para todas as audiências. Se em uma projeção descompromissada o filme já agrada pela trama de Atari em busca do seu amado cão, a profundidade de seus temas transversais consegue segurar a atenção de outras vertentes de interesse. Através de sua abordagem antropomorfizada, “Ilha dos Cachorros” ainda aborda as dimensões individuais, sociais e relacionais dos seres humanos contemporâneos.

Na camada individual, o filme se utiliza dos cães para tratar do limiar entre nossa humanidade e nossa selvageria. Quando um dos animais se descreve como um bicho que morde, embora não saiba o motivo para isso, por exemplo, ele aponta para a capacidade reativa de nossa espécie, pela qual nos tornamos irreconhecíveis ao apresentarmos impulsos que não condizem com a nossa visão de nós mesmos. Apontando a lente para os cães, Anderson levanta um espelho para os homens.

Esta dimensão é aprofundada ao se observar o fato de que, em grande parte do filme, somente os cães falam em inglês; por se passar no Japão, todos os outros personagens se comunicam e os letreiros que surgem na tela são todos em japonês – e muitas vezes sem tradução. Desta forma, apesar de haver muitas pessoas conversando, só é possível compreender – e, consequentemente, é mais fácil de se conectar – com os cachorros.

A linguagem, neste caso, evidencia o escopo social que o filme aborda no contexto contemporâneo. Quando o governo cria uma ameaça inexistente, demoniza todos os integrantes de um grupo, considerando-os indignos de viver, lançando-os ao lixo e posteriormente prometendo exterminá-los como promessa de campanha para eleição. É impossível não traçar um paralelo entre o governo que favorece os gatos em Megasaki e os poderes contemporâneos que tratam imigrantes como animais dignos somente de serem sacrificados. Nesta fábula “orwelliana”, a barreira idiomática serve para ressaltar o subtexto social; os cães, inteligentes e complexos, não conseguem se impor frente àqueles que veneram os gatos por não poderem se comunicar apropriadamente.

Na última dimensão digna de nota, estas duas abordagens dialogam com a camada relacional do filme, a qual versa sobre a necessária aceitação mútua das limitações e falhas quando duas pessoas – ou cães – se relacionam. A conexão homem-animal no filme se debruça sobre fazer com que os diferentes se encontrem em suas semelhanças, aceitando suas loucuras, hábitos e rebeldias – sejam elas oriundas do menino Atari ou do cachorro Chefe. Desta forma, o longa fecha seu ciclo ao tratar dos seres humanos em suas múltiplas facetas de interação – usando cães animados em stop-motion para esse fim, e em somente uma hora e meia de projeção.

Assim, “Ilha dos Cachorros” é uma obra magistral de Wes Anderson. Utilizando-se da antropomorfização de animais para falar sobre a experiência humana, o filme consegue ser profundo sem alienar nenhuma parcela de sua audiência, e ainda presenteia seu público com um espetáculo visual. Pungente e muito bem executado, é um longa que demonstra que a diferença entre os animais humanos e aqueles caninos está somente na perspectiva de quem conta a sua história.

Erik Avilez
@eriksemc_

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