Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 05 de julho de 2016

Marguerite (2015): grandiosidade e beleza

Um pouco monótono, o filme é dotado de uma precisão técnica exemplar. Destaca-se a protagonista, com atuação exuberante em um papel tragicômico digno de Dom Quixote. Não bastasse isso, o longa possui simbologias fascinantes, próprias de um roteiro inteligente conduzido por uma direção impecável.

O importante não é fazer algo grandioso e belo, mas com grandiosidade e beleza”. É com a frase do mestre indiano Swami Prajnanpad que Madelbos deu a Marguerite o empurrão que ela precisava para levar mais a sério o seu hobby.

Inspirado em uma história real, “Marguerite” é um longa artisticamente soberbo, que, contudo, não agradará ao público sedento por narrativas dinâmicas (ou seja, é um pouco parado). Ambientado na França dos anos 1920, o enredo é centrado na protagonista, a rica baronesa Marguerite Dumond, que promove em sua residência eventos com dois objetivos: o primeiro, altruísta, é o auxílio a pessoas carentes; o segundo, vaidoso, é apresentar-se aos convidados, cantando. Convencida de que tem enorme talento vocal, ela decide cantar para um público maior, sem saber (porque ninguém revela, nem sequer seu marido), todavia, que canta assustadoramente mal.

Um plot singelo como este exige execução extraordinária para tornar-se formidável. Com um quê de tragicomédia, a trama, embora unidimensional na superfície, revela significados de conotação transcendente: os que elogiam Marguerite são os interesseiros bajuladores (afinal, ela é nobre e rica); o marido é o arquétipo do homem insatisfeito no relacionamento que busca satisfação fora dele, sem abrir mão das aparências; e há uma metalinguagem artística explícita no que o cinema dialoga com a música.

Esposa dedicada e apaixonada, Marguerite não se encaixa em rótulo algum, é apenas uma mulher generosa, bondosa e ingênua rodeada de pessoas que não merecem a sua companhia – ironicamente, o castigo é ouvir seu canto. Vivendo em uma realidade própria (e exclusiva), ela é a cristalização de Don Quixote. Aliás, Sancho Pança também está lá: o mordomo Madelbos é seu braço direito, quem sempre a acompanha e a apoia, sabendo quão importante para ela é cantar. Fotógrafo, pianista, motorista e psicólogo, são várias as suas facetas, proporcionais à necessidade da patroa; um verdadeiro alento para quem muito dá e pouco recebe. A atuação minimalista de Denis M’Punga concede ao coadjuvante um espaço nobre, quase um camarote privilegiado do espetáculo. No entanto, é a interpretação de Catherine Frot no papel da protagonista que encanta, com nuances impressas na personagem que exigem olhar atento para a percepção. Seu trabalho vai muito além do histrionismo ao cantar. Em síntese, se o elenco está bem, M’Punga está ótimo; Frot, sensacional.

Não menos rico é o trabalho de essência mais técnica. A montagem dividida em capítulos se revela filiada a uma vertente da teoria da montagem das atrações, e a fotografia que se escurece no terceiro ato (para um tom acinzentado) é condizente com o caminhar da narrativa – o tom cômico prevalece no primeiro ato. Em visão macro, Xavier Giannoli dirige as cenas meticulosamente; em visão micro, além de acentuar o suspense para a primeira apresentação de Marguerite, cria metáforas dignas de nota – como, por exemplo, o visual prateado e alado em uma apresentação, e o painel preto e opaco (sem perspectiva) em frente do qual Marguerite treina com seu professor antes de alçar voos maiores (cabe ao referente interpretar). A cereja do bolo é a narração homodiegética (com “narrador-personagem”) presente nas últimas sequências (genial, vez que baseada em delírios). O design de produção (principalmente o figurino) é estonteante; o trabalho de som, fenomenal – de um lado, uma trilha sonora que inclui a fabulosa “Habanera”, de Bizet; de outro, uma edição de som irrepreensível (chama atenção os sons diegéticos de madeira rangendo no palco).

Dificilmente a versão com Meryl Streep (também europeia) alcançará o nível de “Marguerite”, que se consagrou ao receber 4 prêmios no César (o Oscar francês). Paira uma monotonia na película, o que significa que apenas um espectador atento fica cativado com o filme. Se não é uma obra grandiosa e bela, certamente é executada com grandiosidade e beleza.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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