Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Anticristo

Provocativo, simbólico e muitas vezes nojento, o longa é mais um exemplar na carreira do diretor dinamarquês que merece estudos científicos aprofundados, já que ele é um cineasta filosófico dos mais ousados.

A filmografia de Lars Von Trier inclui obras-primas das últimas décadas. De “Dançando no Escuro” a “Dogville”, o diretor nunca se deixou cair no lugar comum, sempre inovando linguística e tecnicamente. Em “Os Idiotas”, uma de suas películas mais criticadas, ele dispensa todos os recursos mais “sofisticados” do cinema e faz um filme quase amador, incluindo-o no controverso movimento “Dogma 95”. Von Trier sempre foi conhecido pelo caráter experimental de suas produções e, em “Anticristo”, ele volta a arriscar no comando de um filme, fazendo uma obra muito particular, que deixou e ainda vai deixar muita gente cheia de questionamentos ao fim da sessão.

A sinopse do filme pode parecer até simples inicialmente, mas, à medida que o longa avança, a complexidade assume o posto principal. Sem nomes, os personagens principais, interpretados por Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, perdem o filho Nic depois de um trágico acidente doméstico e decidem partir para o Éden, uma cabana isolada no meio de uma floresta. Ela, uma importante escritora, está bastante abalada com a morte do menino e é tratada pelo marido terapeuta. A fase de luto da mulher, que é caracterizada por uma incrível sensação de ansiedade, passa somente depois que o casal chega à floresta. Ele, então, começa investigar os medos da esposa, que incluem andar na grama, atravessar uma simples ponte e chegar perto da toca de uma raposa.

O tratamento da mulher avança, mas a relação entre o casal piora. Ela passa a culpá-lo por diversos fatos, enquanto ele parece já ter a resposta para os medos da esposa: a natureza. As brigas seguem, assim como o desejo sexual entre eles. Enquanto isso, a floresta guarda diversos segredos que também abalam as crenças do homem, como uma gazela que aparece com o filhote morto prestes a sair de seu ventre. O local se mostra mais do que uma simples cabana: ele vai despertar o instinto de cada um deles, revelando-os verdadeiramente, principalmente a personagem de Gainsbourg. A dor e o despespero que se seguem completam o ciclo de vida de ambos, e o caos passa a reinar.

“Anticristo” é divido em seis partes: prólogo, capítulo 1 – Luto, capítulo 2 – Dor, Capítulo 3 – Desespero, capítulo 4 – Os Três Mendigos e o epílogo. Na primeira e melhor delas, o diretor nos proporciona uma sequência já clássica. O homem e a mulher fazem sexo enquanto o filho de dois anos desce do berço, abre a porta do cercado, sobe na cadeira e pula da janela. Neste momento, vida e morte se confundem. Se o casal está em intensos momentos de prazer, o garoto conhece a morte ao cair no chão, sempre acompanhado de seu bichinho de pelúcia.Toda a cena é mostrada em super câmera lenta e em preto e branco com uma música clássica de trilha sonora.

A beleza da sequência impressiona e Von Trier prova ser um dos mais talentosos diretores da atualidade. Uma tomada de poucos segundos, no entanto, revela que não estamos diante de um filme meramente bonito. O close em uma penetração sexual dá o tom do que está por vir na película, mas tudo tende a piorar. Cenas de mutilação serão mostradas, mas diferente de filmes de terror comum, aqui temos um propósito válido. Para não estragar a surpresa de quem terá coragem de assistir, basta dizer que as brigas do casal e uma autoflagelação atingirão níveis indescritíveis.

Porém, mais do que um filme escatológico, “Anticristo” é filosófico. Os personagens principais poderiam ser classificados como uma versão contrária de Adão e Eva, ou mesmo como homens comuns prestes a ter a sua natureza revelada. Com seu roteiro, Von Trier permite inúmeras interpretações e este é exatamente o seu problema. Diferente de “Dogville”, a fita fica tão complexa que se torna indecifrável. A intenção dos dois filmes parece ser a mesma: mostrar o quão ruim é a natureza do homem, mas as realizações são absolutamente diferentes. É que esta história é cheia de símbolos, diálogos e sequências sem explicações. O que dizer de uma raposa que fala? Segundo o diretor, a obra nasceu fruto de uma depressão que o atormentou por dois anos e que muitas de suas cenas advém de sonhos subjetivos que teve durante o período, ou seja, apenas ele ou nem ele mesmo deve entender o propósito de cada uma delas. Estamos diante de uma obra particular até demais.

Tecnicamente, o longa é perfeito. Depois da cena inicial, Von Trier volta ao seu estilo documental, posicionando a câmera na mão e dando inúmeros closes. Os cortes bruscos também são uma marca, dispensando momentos de silêncio desnecessários. O filme possui cenas realmente memoráveis, como a do sonho manipulado da mulher enquanto está indo de metrô em direção ao Éden. A intensidade da película também impressiona, mesmo com o seu ritmo mais lento. E quando parece que já vemos tudo de mais estranho, o diretor nos concede o último capítulo. Nele, a mulher se entrega aos instintos e acompanhamos algumas das tomadas mais marcantes e nojentas que o cinema já viu. Se toda essa disposição técnica do cineasta tivesse sido utilizada em prol de algo mais “concreto”, estaríamos diante de um dos melhores filmes de todos os tempos.

Contando com uma fotografia inspirada de Anthony Dod Mantle (“Quem Quer Ser um Milionário?) e com atuações impressionantes de Dafoe e Gainsbourg (ela ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pela performance), “Anticristo” é definitivamente mais uma produção de Lars Von Trier a ser observada. Defendendo teorias e criticando outras, o cineasta deve gerar manifestações de ódio e de amor também por aqui. Mesmo com os seus subjetivismos exagerados, o filme comprova o talento do diretor, conhecido por experimentar sem pudor.

Darlano Didimo
@rapadura

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