Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de fevereiro de 2007

Mais Estranho que a Ficção

Por trás daquele jeito de, com o perdão da palavra, palerma de Will Ferrell, se escondia um ótimo ator. E que maravilhoso projeto é esse que ele escolheu para mostrar isso. "Mais Estranho que a Ficção", como dito em dado momento no filme, não é um sobre a inevitabilidade da morte, mas sobre a continuidade da vida.

Em "Mais Estranho que a Ficção", temos uma tragicomédia com duas linhas narrativas: na primeira, somos apresentados a Harold Crick (Will Farrell), um pacato auditor da Receita Federal que vive sua vida baseado em matemática, com sua existência podendo ser totalmente relatada em números. Totalmente desprovido de paixão, Crick provavelmente nunca vai realizar nada nem tocar a vida de ninguém, sendo apenas uma pessoa passando pela vida. Na outra linha narrativa, temos Kay Eifell (Emma Thompson), uma escritora talentosíssima, que, em todos os seus criticamente aclamados romances, acaba por matar seus heróis, mas está tendo problemas em como "matar" o protagonista de sua última obra, sendo pressionada por sua editora e tendo a ajuda – não requisitada – da consultora Penny Escher (Queen Latifah) para terminar o livro no prazo.

A questão é que o tal personagem é, na verdade, o próprio Harold. Inexplicavelmente, ele começa a ouvir a voz de Kay narrando momentos da sua vida. A situação piora quando Crick ouve a profética frase da narradora: "Mal sabia ele que esta ação tão corriqueira daria início a eventos que levariam a sua morte". Desesperado, o auditor procura a ajuda de um professor de literatura, Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que inicialmente se recusa a ajudá-lo, mas as três palavrinhas ditas pela narradora Kay e relatadas por Harold ("Mal sabia ele…") o fazem mudar de idéia. Paralelamente a isso, Harold conhece (e se apaixona por) Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma jovem confeiteira opinativa, idealista e levemente amalucada a qual deve auditar, já que ela se recusou a pagar a parcela dos impostos que, segundo ela, irão causar mais mal do que bem a sociedade.

O trailer do filme o vendia como mais uma comédia boba estrelada por Ferrell, mas, com uma história intricada como essa, o filme está longe de ser bobo. Um roteiro mais rasteiro ou uma direção mais pesada tornariam Harold Crick alguém aborrecido, e, no final das contas, chato. Mas, com a direção de Marc Forster e o roteiro de Zach Helm (sem contar a maravilhosa e contida atuação de Ferrell), temos uma pessoa altamente inteligente que, por conta de vários problemas na vida – ele fora criado por pais ausentes e largado pela noiva, algo citado, mas não explicitado no filme – se torna alguém que resume sua vida a algarismos e não consegue se relacionar com outras pessoas (vejam sua dificuldade em ver que Ana fez algo de bom para ele, com os biscoitos) e, em última análise desistiu de viver e resolve passar pela vida. Nós entendemos isso e simpatizamos com isso. Quando Harold, percebendo a iminência da morte, finalmente começa a viver e gostar disso, suas atitudes não soam forçadas, mas plenamente compreensíveis.

No outro lado do espectro, temos Kay Eifell. Dotada de uma capacidade intelectual ímpar, sofre por achar que o sentido da vida é acabar, sendo uma pessoa de hábitos considerados auto-destrutivos (suas fantasias suicidas são mais que mera "pesquisa", como ela as chama) e esse ponto de vista mórbido só serviu para afastá-la de outras pessoas, apesar de, em última instância, saber que precisa se relacionar – não exatamente de maneira romântica – com outras pessoas (note que ela diz ler todas as cartas, mas não responder nenhuma). Emma Thompson, geralmente ligada a papéis de glamour, despe-se completamente dessa imagem e retrata Kay sem vaidade alguma, como uma figura totalmente tridimensional, sem os clichês habituais de depressivos.

Quanto aos quatro coadjuvantes, nada de ninguém roubando a história, mas acrescentando a ela. O Prof. Jules Hilbert é interpretado de forma leve e energética por Dustin Hoffman, meio que representando a voz de uma razão meio descontraída no filme. Lidando com uma situação completamente absurda, ele tenta guiar Harold para uma solução de seu problema nada comum. Um professor, alguém cujo trabalho é criar conexões com outras pessoas, num paralelo fascinante com a incapacidade de Harold e Kay de fazê-lo. Ao perceber o que deve ser feito, é visível sua decepção em falhar em encontrar qualquer outra saída. Maggie Gyllenhaal interpreta de forma completamente apaixonante sua Ana Pascal. Espontânea e sincera é fácil para nós percebermos o porquê de Harold se apaixonar por Ana tão rapidamente. Já Penny Escher, interpretada por Queen Latifah, não compromete, mas está lá somente para dar à personagem de Kay alguém com quem dialogar, não tendo qualquer outra função narrativa. Um personagem de pequena importância, mas que me marcou muito, foi Dave (Tony Hale, da série "Arrested Development"), o amigo meio nerd de Harold. Ao ajudar despretensiosamente Harold, ele o ajuda, sem querer, a estabelecer uma relação de amizade, coisa que o nosso protagonista não tinha.

Não pode se deixar de falar da direção de Marc Forster. Saído de um projeto bastante pesado (o ótimo suspense "A Passagem") e lidando novamente com temas fortes e existenciais, Forster não pesa a mão nunca. Dono de um senso visual único, seus planos são elegantes e diferenciados nos dois personagens-chave da trama, criando ambientações diferentes para estes. Não se pode deixar de destacar sua capacidade em nos mostrar a simplicidade da mente de Harold visualmente (graças a gráficos imaginados pelo personagem, vemos apenas dados matemáticos – e posteriormente o nome de Ana), se integrando perfeitamente com a competente escrita do estreante Zach Helm.

Enquanto alguns afirmam que o final do filme o enfraquece (não o comentarei aqui para não estragar a experiência de ninguém), eu não compartilho dessa opinião. Com a própria Kay a comentando, tal conclusão não nos parece forçada, mas natural. A jornada do filme não é só de Harold. Tanto ele quanto Kay passam por experiências inexplicáveis que alteram suas vidas com conseqüências profundas e – para o bem ou para o mal – irreversíveis. Ora, mas não é disso que se trata viver?

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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