Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 06 de outubro de 2006

Dália Negra

O mais novo trabalho do conceituado Brian De Palma revela-se tecnicamente impecável, ao mesmo tempo que nem todos conseguirão digerir tão genialidade, já que "Dália Negra" tem uma densidade dramática muito forte e nem sempre é isso que o público está procurando para assistir nas telonas, mas que é inegável seu êxito, é.

Baseado no livro homônimo de James Ellroy, conta uma história que se passa em 1947, quando o assassinato misterioso da aspirante a atriz Elizabeth Short (Mia Kirshner), ou mais conhecida por Dália Negra, acaba seduzindo dois policiais (e ex-boxeadores), Bucky (Josh Hartnett) e Lee (Aaron Eckhart), que ficam obcecados pelo caso, se envolvendo mais do que imaginariam que fosse possível. Além de parceiros no trabalho policial, os amigos começam a dividir o carinho e atenção de Kay (Scarlett Johansson), uma ex-prostituta que atualmente mora com Lee, longe das mãos do seu antigo "dono", que está prestes a ser solto. Durante a investigação, os detetives conhecem Madeleine (Hilary Swank), uma misteriosa e sedutora mulher que se veste de femme fatale, assim como Elizabeth Short, além de possuir grandes semelhanças com a mesma. A partir daí um jogo de investigação, amor, traição e reviravoltas vai sendo montado durante as duas horas densas de "Dália Negra".

Confesso que não irei me surpreender se alguém disser que odiou o filme, até porque esta foi a primeira impressão que tive assim que saí da sala de projeção. Vários motivos me levaram a esta conclusão, sendo o primordial a densidade do roteiro. Não estou endeusando o trabalho de Josh Friedman, que comentarei mais tarde, mas estou defendendo que nem sempre os espectadores estão preparados ou com paciência para enfrentar uma trama longa, cheia de subtramas que vão se desenvolvendo em um ritmo lentíssimo até atingir seu clímax, o que acaba não atraindo muito o interesse de alguns e desclassificando aqueles que foram ao cinema somente atrás de uma boa diversão. Se é esta a sua visão, melhor escolher outro filme, pois "Dália Negra" certamente vai exigir muito estômago para que possa compreender os fatos, acompanhar o ritmo do enredo e ainda aguentar algumas cenas levemente chocantes. Com toques perfeitamente reproduzidos de meados deste século, a tonalidade sépia fica responsável por dar mais peso ainda à trama e os diálogos são muito referenciados, exigindo muita atenção ao dinamismo que é gerado entre os personagens, ou seja, um prato cheio para uma distração qualquer que o espectador tenha que gere um total desentendimento do filme.

De qualquer forma, a competência técnica é inegável. Os figurinos e o tratamento da película estão totalmente 'in' do roteiro e causa uma sensação de estarmos assistindo a filmes clássicos, justamente por investir em técnicas que fogem do jeito hollywoodiano de ser, mas sem perder seu toque requintado. Brian De Palma faz mais uma belíssima performance. Talvez se mostrando um pouco tímido em investir em planos realmente envolventes, ele consegue resultados magníficos cuja fotografia é memorável e as seqüências ficam perfeitamente interligadas. Além disso, recursos técnicos como as transições entre as cenas que se misturam e ficam sobrepostas umas nas outras, ou então as ousadias em brincar com tais passagens das seqüências estavam realmente faltando em uma obra contemporânea, e De Palma conseguiu readministrar seu uso com harmonia e sensibilidade. Mesmo dando um caráter lento e longo ao desenvolvimento da trama, De Palma usa dos efeitos sonoros para ilustrar e embelezar sua direção, acertando no ritmo e intensidade certos da trilha sonora, juntamente com vários truques de câmera, como usar a slow cam e os closes nas expressões dos personagens. Além disso, mostra que é veterano ao angular a câmera em alguns momentos e tirar do plano em geral verdadeiros exemplos de como um diretor deve proceder: ousando e acertando.

Se por um lado De Palma faz de tudo para seguir uma direção impecável, o roteiro de Josh Friedman tem lá seus erros que acabam denegrindo a produção. Construindo uma história baseada no excesso e na tentativa de fazer com que todas as tramas paralelas funcionem, mas não consegue, colocando em dúvida as muitas ações precipitadas dos personagens. Outro erro de Friedman é referenciar demais os diálogos a nomes e sobrenomes de personagens que nem sempre estão representados fisicamente, exigindo do público uma atenção peculiar para que consiga entender quem é quem ou quem fez o quê. Tudo bem que isso é até característico de filmes ambientados na época decorrente, mas acaba causando uma verdadeira confusão no espectador que, em determinado momento, pode se questionar qual trama está sendo desenvolvida. Friedman poderia ter enxugado mais os acontecimentos e poupado tempo, evitando que o desfecho com suas inúmeras reviravoltas e tentativas de dar uma explicação a todo o contexto que o enredo se passou parecesse tão forçado e insuficiente. Mesmo assim é impecável o tratamento dos diálogos de cada personagem e Friedman constrói uma narrativa no mínimo instigante e maliciosa.

Nas mãos de um grande diretor e de um roteiro que exigiria responsabilidade de qualquer que fosse o elenco escolhido, quatro jovens atores hollywoodianos que estão nas suas fases de ouro na indústria cinematográfica assumiram com, no mínimo, competência seus papéis. Claro, cada qual com suas particularidades, mas, em suma, demonstraram muita maturidade ao construir o psicológico dos seus respectivos papéis. Josh Hartnett é sem dúvidas o maior destaque e isso não se justifica somente pelo maior aproveitamento espaço-temporal que teve em cena, mas conseguiu passar com brilhantismo as dúvidas e transtornos emocionais de Bucky e aproveitar os momentos de close-ups que De Palma fazia nele. Por outro lado, seu companheiro Lee, interpretado por Aaron Eckhart, não apresenta elementos novos na composição do papel, a não ser o sotaque fortemente empregado e desnecessário. Eckhart tem talento e cresce a cada novo trabalho. Sua performance em "Obrigado Por Fumar" é impecável, mas o que impede sua evolução é que ele não consegue ir além do que pode. Um ator limitado sofre com sua similaridade entre seus trabalhos e não destaca-se pela versatilidade, característica que está sendo cada vez mais exigida no cinema.

Na ala feminina, temos a belíssima Scarlett Johansson. A queridinha dos cinéfilos, desde "Encontros e Desencontros" e sua brilhante atuação em "Match Point – Ponto Final", tem mostrado para o que veio e tem tudo para se consolidar na indústria audiovisual. Johansson tem uma facilidade enorme em trabalhar o texto e uma sincronia com qualquer que seja o personagem que esteja em cena com ela. Já Hilary Swank faz verdadeiros milagres. O primeiro é que, como a femme fatale do filme, exigiria um forte trabalho estético na sua imagem e conseguiu ficar realmente sedutora. Não estou dizendo que ele é desprovida de beleza, mas quem a viu em trabalhos como "Meninos Não Choram" e "Menina de Ouro" fica impressionado com sua beleza exótica e sente o cheiro de sedução que ela exala. Outro milagre foi ter conseguido realmente fazer de Madeleine um objeto marcante em cena, já que o roteiro acaba esquecendo um pouco da sua função na trama. O resto do elenco pende entre personagens caricaturados demais e leves performances boas, que não chegam a atrapalhar. E não posso esquecer de citar a participação de Mia Kirshner, que mesmo aparecendo pouco, faz de Elizabeth Short um personagem acima de tudo enigmático e triste.

Mesmo tendo como plano de fundo um dos assassinatos mais comentados e misteriosos de toda a história cinematográfica, o exagero com que as tramas paralelas são tratadas e se interligam acabam dispersando a audiência e exigindo feeling demais do público para que entenda a proposta do filme. Particularmente forte e envolvente, não são todos que conseguirão sugar todas as propostas que impõe, mas aquela parte do público que conseguir se deixar levar perceberá que "Dália Negra" não é uma diversão gratuita, e sim, o começo para conseguir construir verdadeiros clássicos contemporâneos. Até porque não é só uma historinha de perseguição, tema este que sempre despertou interesse desde os tempos do cinema mudo, mas trata com grandeza as dimensões do sexo, do desejo, dos princípios e da obsessão. Uma boa opção para quem encara o cinema como uma estética e é contra a poluição gratuita das nossas salas de projeção por filmes realmente desprezíveis.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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