Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 20 de março de 2006

Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo

Sinto-me injusto com o filme, não sou capaz de exprimir tudo aquilo que o filme e representou para mim. Posso dizer que Dois Córregos se tornou meu filme nacional preferido. Parabéns a Reichenbach por essa fabulosa obra.

Confesso que nunca fui grande fã do cinema brasileiro. Boa parte ou considero medíocre/ruim, ou não vejo a razão de tanto alarde. A exemplo disso ficam Deus e o Diabo na Terra do Sol, Central do Brasil, entre outros. Porém ultimamente resolvi dar outra chance ao cinema nacional, investindo em diferentes cineastas. Um desses casos foi Carlos Reichenbach. Cineasta e editor do blog Reduto do Comodoro, Reichenbach sempre esteve na minha lista de assistir. Seu último filme, Bens Confiscados, acabou por não ser conferido já que ficou duas míseras semanas em cartaz aqui em São Paulo. E, exceptuando-se grandes locadoras como a 2001 Video, fica-se difícil encontrar seus filmes para locação. Felizmente, Dois Córregos, o que mais ansiava para assistir, estava disponível onde alugo – e de sua filmografia apenas esse, Alma Corsária e Anjos do Arrabalde, além do lançamento Garotas do ABC, com boa parte devidamente locado.

Dois Córregos é uma pequena cidade do interior paulista, que serve como ponto de partida para a trama de uma mulher. Com a morte dos pais, restou a ela voltar a cidade de Dois Córregos, onde a família tinha uma propriedade, para ver em que condições ela permanecia. Ana Paula só visitara a cidade poucas vezes durante a infância e adolescência, mas só uma vez realmente a marcara. E voltando lá, ela rememora os fatos acontecidos num distante verão. Com tal premissa, Reichenbach nos presenteia com um dos mais belos filmes nostálgicos.

Em uma das primeiras cenas do filme, Ana Paula no topo de um penhasco começa a chorar ao olhar em direção ao rio e ver algo familiar. É nessa cena que eu percebi o quão bom esse filme seria. Uma cena tão onírica, e tão sincera que chega a ser perturbador e comovente ao mesmo tempo. A câmera se aproxima, e o rosto já em lágrimas permanece lá, em silêncio, pensando, lembrando. Isso foi com certeza uma das coisas que mais marcou no filme, a cena fluindo e o lirismo impregnado na lugubridade do ocorrido. Soberbo.

A trama de Ana Paula baseia-se no encontro com o tio, um refugiado político da era militar. Ela fora com a amiga visitá-lo. O interessante é que mesmo que o lirismo e chancela de cotidiano permeie o filme, o aspecto social encontra-se – o que se difere para mim, por exemplo, de Alma Corsária, em que o diretor faz no filme claramente a crítica social, também ótimo -, mesmo que não haja uma crítica, ao menos explícita. Muito mais se conta os fatos do que se critica, o interesse do filme não é denunciar nada, isso só faz parte. A razão é mostrar umas férias marcantes na vida de uma mulher, e encontrar a poesia, uma das mais belas, nisso.

A crítica ausenta-se, pois em nenhum momento há a condenação. É como uma viagem de volta ao Realismo da literatura. O narrador apenas aponta o que acontece, como o fato do tio de de refugiar-se numa cidadezinha do interior por estar sendo procurado como comunista. Ou o abuso da força do exército nessa época. Ou mesmo o adultério tratado com normalidade. Não há uma insistência em denunciar, os fatos apenas se expõem, e a beleza encontra-se nela perplexidade da vida. As coisas acontecem, sejam belas ou não, sejam dramáticas ou não, não é preciso enfeitar algo essencialmente belo.

Carlos Reichenbach é um tremendo cineasta e roteirista. A fluência da película é espantosa. Um filme calmo, simples, que passeia nos acontecimentos, intercalando com uma linda trilha sonora tocada pela pianista Luciana Brasil (a amiga de Ana Paula). A graciosidade das cenas do piano corroboram numa dinâmica que fica, resguardada em nossas mentes. Vai e volta, mas sempre há a música clássica. A imortalidade, aquilo que fica para sempre. A música é como a memória de Ana Paula, contínua, intensa e presente.

O clima do filme é embebedado de uma nostalgia alegre. O saudosismo não reclama um passado que não existe mais, e sim celebra a alteração que aquilo causou. Tudo é um rito de passagem, e a cabeça humana muda muito. O filme mostra isso claramente, como nada é para sempre – falando-se de opinião e ponto de vista -, que pode mudar. E o que fica é: será que uma memória vale mais do que se ater ferrenhamente ao que pensa?

Carlos Alberto Riccelli é alma do filme. Sua personagem transparece cada momento e amarra toda história. Com sua voz meio rouca, conversando, discutindo, rindo e conquistando corações femininos, se coloca como alguém excepcional, mesmo que de fato nada disso tenha nele. É a capacidade de se expor e de cativar. Assim como o filme faz, ele cativa o espectador com seu nostalgismo, mas fugindo de um sentimentalismo. Outra grande atriz do elenco é a bela Ingra Liberato, no papel da jovem 'governanta' da casa. Desagrada-me bastante Luciana Brasil como atriz, a exímia pianista só se mostra realmente bem no piano. Suas feições são pífias e um ar falso emana em todas as cenas dela, principalmente naquelas em que se revolta.

Dizer que o cinema brasileiro não tem composição artística visual é um grande atestado de ignorância. Dois Córregos, por exemplo, possui um belíssimo cenário, uma fantástica fotografia e a trilha sonora é um dos grandes destaques. As tomadas, a edição, e até mesmo o figurino se adequam te tal maneira ao filme que tornam-se imprescindível para ser a brilhante obra que é.

Eu não posso encerrar essa crítica sem ao menos comentar o brilhante subtítulo do filme: Verdades Submersas no Tempo. Uma linda frase que habilmente ratifica tudo o que o filme se propõe a mostrar.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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