Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de março de 2005

Moça com Brinco de Pérola

Certamente ao assistirmos, teremos a sensação de que nossos olhos percorreram com emoção as linhas e as cores expressas pelo gênio Vermeer.

Da precisa mão que pinta, a delicadeza do toque. A mistura de cores define aos poucos a medida certa de luz à imagem, dosada pelo uso do pincel. A pintura delineia-se gradativamente como obra-prima de um gênio. Poucos são os filmes que conseguiram captar e transpassar tão bem para as telas do cinema a sensibilidade do processo criativo de um artista plástico. "Moça com Brinco de Pérola", do cineasta inglês Peter Webber, se encaixa como uma dessas raridades. Aqui o grande desafio é recriar o contexto em que o pintor holandês Johannes Vermeer (1632-1675) criou o quadro que dá nome ao filme. Considerada a "Monalisa" da Holanda, a pintura é uma das mais famosas da história da arte, pois pouco se sabe sobre sua real origem inspiradora.

A própria biografia de Vermeer é ainda uma incógnita. Sabe-se apenas que ele nasceu em 1632, em Delft, na Holanda; casou-se aos 20 anos com Catarina, uma jovem rica, e morreu aos 43 anos, em 1675. Das obras que realizou, 35 são conhecidas e calcula-se que cerca de 20 estejam perdidas. O valor do trabalho de Vermeer só será reconhecido tardiamente, no século XIX. Instigada pela vida misteriosa de Vermeer, a romancista Tracy Chevalier hipostasia num livro uma versão para o surgimento do quadro "Moça com Brinco de Pérola". O romance tornou-se um sucesso editorial em 1998 e permaneceu 50 semanas na lista dos dez maiores best-sellers do New York Time Book Review. O sucesso foi tanto que Peter Webber, que antes era diretor de filmes para a TV, resolve adaptar o livro para as telas e iniciar assim a sua carreira cinematográfica.

Interpretado pelo ator britânico Colin Firth, Vermeer aparece aqui como um pintor angustiado que sofre o pão que o diabo amassou com as pressões da família, formada pela sogra, pela esposa mimada e pela penca de filhos paridos pela mulher. A sogra serve como se fosse a marchant de Vermeer, que negocia a venda dos quadros do pintor com o mecenas Pieter Van Ruijven (Tom Wilkinson). O trabalho artesanal da pintura era pedido sobre encomenda. O processo de criação de Vermeer dura meses e conduz o pintor ao isolamento no ateliê construído em sua própria casa. Tudo transcorre normalmente, até que a rotina rompe-se com chegada de uma nova criada, a pobre e bela Griet (Scarlett Johansson). Aos poucos, ela passa a entender a sensibilidade que o pintor pretendia expressar nos seus quadros. Griet acaba assim se tornando tema da pintura referida. Vale notar a incrível semelhança da atriz com a moça pintada no quadro.

Sem entrar muito em detalhes da veracidade ou não da história retratada no filme, vamos analisar alguns aspectos formais do filme. A reconstrução da cidade de Delft do século 17, bem como do ambiente do ateliê de Vermeer, faz com que o espectador consiga mergulhar no universo criativo do pintor. Uma das cenas mais polêmicas para quem entende de arte é a presença da câmara escura (precursor da fotografia) no ateliê. Ainda há sérias discussões sobre o uso de tal recurso pelo pintor na realização de suas obras-primas. Segundo o artista inglês David Hockney, no livro O Conhecimento Secreto, Vermeer parecia "encantado com os efeitos ópticos da lente e tentou recriá-las na tela". Não é a toa que, na maioria dos quadros de Vermeer, há detalhes desfocados, enquanto outros são maiores do que vistos a olho nu, o que só poderia ocorrer se o artista usasse lentes.

O filme foi indicado a três categorias do Oscar deste ano: Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino. A perfeição dos três aspectos técnicos juntos saltam aos olhos do público, que se sente como um espectador de uma obra de arte. A fotografia do português Eduardo Serra assemelha-se ao diferencial das pinturas de Vermeer: o não empobrecimento do uso da perspectiva em cenas cotidianas que ressaltam o tratamento sutil das várias tonalidades da luz do dia.

O filme nos aproxima do mesmo sentimento demonstrado por Griet ao ver seu retrato finalizado. A moça com brinco de pérola confessa: "Você olhou dentro de mim". E certamente, ao sairmos da sala de cinema, teremos a sensação de que nossos olhos percorreram com emoção as linhas e as cores expressas pelo gênio Vermeer.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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