Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 20 de abril de 2005

Nós Que Nos Amávamos Tanto

Ettore Scola marcou toda uma geração, através de um sensível e aprofundado estudo sobre a amizade e a passagem do tempo.

Quando falamos de Cinema Italiano lembramos de imediato sua postura no período pós-guerra, conhecida através da neo-realista, que veio para balizar uma posição preferencial ante os críticos e os estudiosos da sétima arte não só da Itália, mas como de todo o Mundo. O neo-realismo, à principio, recebia a interpretação errônea de que não passava de uma simples manifestação de desabafo de um povo lírico e sentimental que após terem vivido trinta anos de fascismo, atravessava, enfim, sem muitas perspectivas, uma guerra antes de tudo humilhante. A vitalidade sentida nos anos 70 no cinema italiano esclarece a presença natural e histórica das virtudes estéticas desse povo, tão patentes na música e na arquitetura, que são artes próximas do cinema.

Tomando como exemplo Nós Que Nos Amávamos Tanto (C’eravamo tanto amati, 1974), percebemos que o traço marcante da produção italiana é, de fato, a sua humanidade. Em outras palavras, é justamente a riqueza lírica e social dos argumentos que explora um Ettore Scola, por exemplo, que sentimos de forma simples e convincente, um retrato fiel de uma época perdida na memória de alguns ou nas páginas amarelas de um livro esquecido na estante.

Através da história de três amigos que se conheceram durante a Segunda Guerra e foram apaixonados pela mesma mulher, Scola vai traçando um painel da vida italiana dos trinta anos que se seguiram ao final de 1945, quando três homens, completamente diferentes um dos outros, formam uma amizade a partir da Resistência, na Segunda Guerra Mundial. Uma amizade que vai se desencontrando com o término da guerra e início de outra: a de conquistar o amor de uma mulher. Musa de inspiração e de tantas brigas entre os amigos.

Com este filme, Ettore Scola marcou toda uma geração, através de um sensível e aprofundado estudo sobre a amizade e a passagem do tempo que, por sua vez, desenvolve-se em dois momentos: um marcado pelo acompanhamento dos fatos marcantes dos trinta anos da história da Itália após a 2.a. Guerra, através da amizade entre três homens que seguem trajetórias muito diferentes; e outro, através de uma verdadeira homenagem à sétima arte, com direito a cenas de filmes de Antonioni, Visconti, Fellini e De Sica (este último recebe a dedicatória de Scola). É como a repressão de um tempo difícil andasse de braços dados com a arte, em busca de uma identidade há tempos perdida. Sobre isso, Scola nos diz “A História se encontra muito presente em meus filmes. Seja a Revolução Francesa, em Casanova e a Revolução, seja a História da Europa em O Baile ou em O Terraço,(…) a história está sempre presente, pois acredito que não podemos desconsidera-la e muito menos mudá-la, já que não somos encarregados de tomar grandes decisões. Ficamos sem dúvida, sujeito à elas”.

Um proletário, um burguês, um intelectual, e uma atriz, que ao invés de atribuir uma ordem a tão distintos companheiros, acaba por desestruturar tudo o que ainda restava entre eles. A natureza psicológica que construiu as personagens parte das esperanças de um mundo diferente e, por conseguinte, de uma visão diferente de mundo. São, de fato, um retrato magnífico de uma geração que, ainda diferente, acabaram aceitando passivamente a guerra. Acabaram recebendo, de braços abertos, o horror do nazismo (como podemos ver na visita que Hitler fez à Itália, no filme Um Dia Especial).De uma sociedade igualmente diferente, as que, ainda que passivamente, aceitou a guerra.

Analisando melhor as personagens, identificamo-nos com Nicola – Cinéfilo de carteirinha, que vem do Sul da Itália, desembarcando em Roma, mítica cidade do cinema (Cineccità), com a vontade de ver seu grande ídolo cinematográfico, que é De Sica. Professor de uma tradicional universidade, Nicola passa a acompanhar toda a filmografia de De Sica, chegando até a perder um emprego quando rebate a opinião do reitor em relação à Ladrões de Bicicleta. Sobre a temática do filme que tanto ama, Nicola responde as agressões do reitor: “Com porcaria e lixo, sim senhor. Isso nos faz reconhecer os verdadeiros inimigos da coletividade. Os próprios falsos defensores da graça, da poesia e do belo e de todos os outros valores hipócritas de vossa culta burguesia”. Aos poucos, vamo-nos apaixonando por este esquisito e revoltado professor, que chega a abandonar a família em busca de um ideal. “Eu sou contrário à amizade. É uma penal entre povos, uma cumplicidade anti-social! Um intelectual está além … o inatingível!!!”, berra ao amigo enfermeiro, Antônio (Nino Manfredi) – o mais redondo das personagens, já que começa e acaba o mesmo. Ao contrário de Nicola, que acaba se decepcionando com De Sica, e com seus próprios ideiais. Dentre suas frases primorosas, uma merece maior destaque: “Nós pensávamos que mudaríamos o mundo, mas foi o mundo que nos mudou”.

Gianni (Vittorio Gassman) é o mais contraditório. Alguém que começa como um exímio romântico, mas que com o tempo acaba se rendendo à ganância, sentimento que mais caracteriza a nossa humanidade hoje em dia. Como acreditar em um comunismo se a ideologia do capital agiganta os olhos do indivíduo? A ânsia de poder, de ser, de querer e de possuir. Qual deles é a pior?! Quando descobriu a resposta, já era tarde, pois a mulher, a doce Luciana, já tinha desistido de seu amor.

Luciana (Stefania Sandrelli) é a que melhor se sai no filme, posto que os três amigos, desiludidos e amargurados com o tempo, são os mais frágeis. Ela é a fortaleza, mesmo que tenha tentado se matar.

Interessante ressaltar as belíssimas referências de filmes, que sugere o próprio evoluir da história do cinema, que pode ser interpretado no preto-e-branco que inicia o filme, no período pós-guerra (como coloca a narrativa) até o começo dos anos 60, momento este em que o cinema passa a ser mostrado à cores. Filmes como "Ladrões de Bicicletas", de De Sica; e “O Eclipse”, de Antonioni são alguns exemplos, sem contar a cena dos bastidores da filmagem de "La Dolce Vita", em que podemos ver o próprio Fellini atuando como ele próprio, nas suposta gravação de seu grande filme.

Há também referência ao teatro, especificamente à uma peça de Eugene O´Neill, inserida no filme com uma sugestão bem poética, na medida em que as personagens passam a dizer seus pensamentos em voz alta, às vezes dialogando com a própria câmera, comentando a ação, enquanto em volta deles as pessoas se imobilizam, e o espaço deles obscureça como num palco.

O que mais podemos dizer desse filme?! Um encadeamento de emoções que nos entorpecem. (…)

E viva De Sica!

Sem mais comentários.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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