Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 27 de setembro de 2005

Quarto Verde, O

Morte. Esquecimento. Vida. Amor. Essas são as palavras chaves desse filme, um dos último trabalhos de François Truffaut.

Assistir em São Paulo é muito vantajoso, ainda mais para os amantes do cinema. É vivendo nessa cidade que tenho a oportunidade de ver um dos últimos filmes de François Truffaut, que não seja em alguma mostra – que trazem outros grandes títulos. O Quarto Verde entrou em cartaz na última sexta, e após ler sobre o que exatamente se tratava esse filme, não tinha como deixá-lo de ver. Um filme sobre a morte e como o próprio Truffaut dizia, contra o esquecimento. É alegre e triste assistir a um filme como esse, alegre por nos mostrar um cinema altamente qualificado, pontuando a profundiade de um roteiro muito bem elaborado, tratando de um tema sublime e lúgubre de maneira ora confortante ora depressiva; triste ao constatarmos que obras como essa, diretores com uma capacidade criativa tão ampla e tamanha habilidade em argumentação, é algo escasso nos dias de hoje. Sem querer desmerecer as produções norte americanas, que costumam figurar entre meus filmes preferidos, mas é muito difícil encontrar um produção norte americana tratando sobre o existencioalismo de tal maneira, isso é algo muito mais comum em filme provindos da Europa e do extremo oriente. E tais questões abordadas é que trazem a qualidade das obras em muita das vezes.

O diretor francês Fraçois Truffaut foi um dos expoentes da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico extremamente importante para a história do cinema, sendo uma espécie de jovem realismo francês. Tal movimento além de lançar diretores como Jean Luc Godard e Alan Resnais, pregou uma revolução para o cinema da França. Queriam que o cinema fosse usado como meio pessoal de exposição, de expressão artística e que houvesse uma maior liberdade de produção. Graças a tal movimento, seus principais diretores tornaram-se ícones de várias gerações e sinônimo de cinema altamente qualificado. Hoje em dia falar mal de Truffaut é quase uma heresia, pois seu cinema é dotado de uma capacidade argumentativa brilhante, com uma linguagem clara e única.

Morte. Esquecimento. Vida. Amor. Essas são as palavras chaves desse filme. A morte é algo tão comum em nosso cotiadiano que se torna transparente após algum tempo, afinal a morte é a única certeza que temos em nossa vida, é algo básico que completa nosso ciclo terreno. A crueza da morte é algo corriqueiro que acaba sendo esquecido e quanto mais tempo se passa, menos tempo para nos lembrar deles temos. A principal conseqüência da morte, pelo menos a mais triste, é que, eventualmente, esse indíviduo será esquecido, ainda mais se o cidadão for ordinário. Mortos de guerra, zeladores do país, heróis nacionais. Hoje em dia só servem para enfeitar muros ao redor do mundo, com seu nome tão minusculamente escrito ao lado de tantos outros e com tais monumentos já comuns a nossa vista. Foram esquecidos. É isso que a morte traz, o esquecimento, de tão rotineiro que é. Sentimos falta dos mortos, dos nossos mortos, daqueles que conhecemos e nos rodearam e nos fizeram felizes em certos momentos, mas é raro nos pegarmos lembrando deles. Vivemos muitas vezes tão intensamente o presente e o futuro que nosso passado se torna cada vez mais longínquo. É importante lembrarmos de nossas origens e das pessoas que nos tornaram o que somos hoje. Mas não lembrarmos para ficarmos tristes, mas para celebrar o que tal pessoa significou.

O propósito do autor, creio, é exatamente isso. Julien Davenne encarna um sujeito que reverencia os mortos dele, pois ao reverencia-los, eles não serão esquecidos, e assim isso não acontecerá com ele. É também cíclico, como a morte. Manter a lembrança daqueles quem nos foi importantes, para um dia também figurarmos nesse contexto. Julien devota seus dias para que seus mortos tenham algum destaque, pois a morte é o fado ao esquecimento, e acaba tornando-se algo desrespeitoso. Com a morte de sua esposa, Julien mudou, ainda mais com as diversas mortes doa amigos na Primeira Guerra Mundial, e todos foram esquecidos, não por ele. No primeiro momento do filme nos deparamos com uma imagem contraditória com o enredo, mas aos poucos vamos lidando com as situações e entendendo o porque daquela obstinação. É então que vemos o progresso com uma pessoa, Julien encontra alguém muito parecida com ele, e ao mesmo tempo diferente, e nela vê-se a junção de objetivos – e seus contrastes – e a pessoa que o comtemplará em sua morte, nunca deixando o fogo das velas apagar.

O tema filosófico do filme constrói-se em simples fatos, e isso o engrandece. A boa filosofia, ou seus produtos, provém de questões tão manjadas que já se tornaram estúpidos, mas a sabedoria vem no tratamento disso. E a genialidade de Truffaut se vê na precisão em que ele coloca as cenas da capela, contrapondo-se com a vida terrena e seus despropósitos. Anteriormente já havia visto a singeleza que ele trata um relacionamento em O Homem que Amava as Mulheres – até o momento, seu filme que mais aprecio. Já falei e repito, o diferencial num filme é seu lirismo. E Truffaut mostra nesse dois filme aqui citados exatamente como ser diferente num filme.

François Truffaut além de brilhante diretor também é um ótimo ator. Gostei de ver seu trabalho como Julien Davenne, uma personagem esférica, cheio de complexidades. A cena final é brilhante, e o ponto que culmina o filme é um show por parte de Truffaut diretor e de Truffaut ator.

Alguns destaques para cena do incêndio, onde Truffaut ator nos mostra realmente sua personagem, e a compra do anel. A cena final já entrou para o hall de minhas cenas preferidas, tamanha a sensibilidade daquele desencontro.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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