Cinema com Rapadura

Críticas   quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Projeto Flórida (2017): empatia pelos rejeitados

Novamente enfocando as pessoas marginalizadas, Sean Baker retrata crianças travessas que não sabem, mas batalham todos os dias pela sobrevivência – mesmo morando, paradoxalmente, ao lado de um lugar “mágico”.

Como sentir empatia por um setor social rejeitado? “Projeto Flórida” é um ingresso para a periferia de Orlando (Flórida, EUA) e uma apresentação muito humana aos párias daquela sociedade, que mostra o caminho cinematográfico para esse fim.

O longa retrata o cotidiano da pequena Moonee (vivida pela estreante Brooklynn Prince), uma garota de seis anos acostumada a praticar traquinagens com os amigos nos arredores de seu lar, uma pousada de beira de estrada. Paulatinamente, as vidas de Moonee e de sua mãe se complicam, precisando cada vez mais do amparo de Bobby (Willem Dafoe, de “Assassinato no Expresso do Oriente”), gerente do hotel.

O responsável pela produção independente é Sean Baker, que supera seu bom “Tangerine”, no qual também foi diretor, montador, corroteirista e coprodutor (repetindo a parceria com Chris Bergoch). Mais uma vez, o objeto da sua obra, sem rodeios ou metáforas, são as pessoas marginalizadas, esquecidas e/ou excluídas da sociedade, priorizando um elenco sem experiência. No caso de “Projeto Flórida”, envolve crianças que paradoxalmente moram ao lado de um lugar “mágico”, mas precisam se esforçar para conseguir um luxo simples como um sorvete. Os infantes não sabem, mas batalham todos os dias por sua própria sobrevivência.

A rotina do grupo liderado por Moonee é singela: são crianças muito inquietas, que ocupam seu tempo com travessuras que a maioria dos pais proibiria. Apesar de qualquer senso de responsabilidade impor a reprovação das suas atitudes (cuspir em bens alheios e mesmo em pessoas, entrar onde sabem que não podem, quebrar objetos abandonados e assim por diante), existe sempre a menção de que são apenas crianças – logo, sua infantilidade é exibida constantemente (limpam a sujeira se divertindo, têm dificuldade em dividir os fascinantes aparelhos eletrônicos, imaginação fértil e não compreendem os atos adultos ilícitos e os ocultados por razões diversas). Todavia, de certa forma, as crianças são versões menores de seus pais: Dicky (Aiden Malik, de “Segredos e Mentiras”) tem o figurino de seu pai (boné snapback para o lado e regata), enquanto Moonee tem a mesma empolgação da mãe para tirar selfies de biquíni – sem contar o palavreado chulo de todos os pequenos, idêntico ao dos genitores.

A vida da protagonista vai perdendo os encantos infantis por força de “coisas de adulto” (por razões que ela não entende bem). Ainda que ela não perceba, Bobby tem participação importante na sua vida: na pousada, ele é o responsável pela ordem (vai atrás das crianças para solucionarem os problemas que causam, já que os pais não dão conta), tendo uma autoridade respeitada pelos pequenos, como mostrado na cena do sorvete. Sua paciência é tão infindável (inclusive com adultos) quanto seu afeto: apenas um coração gigantesco ajudaria Halley (Bria Vinaite, como a mãe de Moonee) tantas vezes e aceitaria as brincadeiras das crianças em seu escritório, como quando as meninas se escondem. Se necessário, Bobby pode ser um pacifista (para os adultos) ou um protetor (para as crianças).

Willem Dafoe é o único ator profissional da obra, demonstrando sensibilidade ímpar e carisma ao interpretar uma personagem tão gentil que chega a pedir educadamente para alguns animais saírem de uma via por onde passam veículos. Entretanto, quem comove mesmo é Brooklynn Prince, esbanjando espontaneidade: seu sorriso é um oásis de alegria; quando ela chora, a emoção abala qualquer um. Impressiona a facilidade que Baker tem para dirigir atores, considerando que são sempre inexperientes. Não que o longa seja só acertos: a participação de Caleb Landry Jones (“Corra!”) é deveras obscura e deslocada, e há um grave problema de ritmo – o filme poderia ser mais curto. Contudo, a insistência na rotina não é desmotivada: por exemplo, as cenas de Moonee na banheira têm sua triste razão. Como não poderia deixar de ser, a direção se preocupa em ser realista (da comida ao suor de Bobby), atenta aos pormenores (como os passeios de helicóptero na região) e sua arte dá um banho de tons púrpura – que evocam liderança e criatividade, características da protagonista.

Os minutos finais do filme trazem um significado desolador e justificam a experiência que o longa traz. Sem perceber, o espectador se vê imerso na trama e já nutre carinho pelas personagens, em especial por Moonee. E a empatia por aquelas personas que representam pessoas reais se torna inegável.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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